O personagem de Shakespeare nos alerta para o que estamos deixando de lado
Imagine a seguinte história: um homem, com ambição desmedida e poucos escrúpulos, faz de tudo para conquistar o poder. Nada limita sua sede de comando sobre os homens e sua vontade de domínio. Mente, engana, faz pactos com o lado sombrio da força, age nas trevas e se cerca do pior tipo de gente. Dos mistificadores mais alucinados até pessoas conhecidas por sua proximidade com extermínios.
Reconheceu? Parece, mas não é quem você está pensando. Este personagem existiu, pelo menos na imaginação do dramaturgo Shakespeare (que se inspirou em fatos reais), e está imortalizado na mais sombria tragédia de todos os tempos, Macbeth. Produzida no começo do século 17, a obra tem muitas passagens clássicas, como uma das mais conhecidas falas escritas pelo autor: “A vida é uma história narrada por um idiota, cheia de barulho e fúria, não significando nada”.
A peça é uma sequência de disputas, mortes, crimes, traições, conspirações e assassinatos, que vão da primeira cena até o final da história. Depois de tanta violência, sobram poucas pessoas vivas para testemunhar o resultado da sede de poder quando faltam princípios éticos e sentido humano das ações. Por dentro, impulsionado pelas bruxas e espectros, os homens e mulheres são capazes de tudo pelo poder absoluto.
Há uma cena em Macbeth que costuma passar despercebida e, por vezes, é até mesmo retirada das montagens por parecer muito artificial. Em meio a tanto sangue e maldade, em determinado momento da madrugada, batem à porta do castelo onde se passa a trama. E então surge um porteiro simplório, que solta os cachorros contra tudo e contra todos, antes de fazer seu serviço e abrir a porta. É sua única participação na peça.
Sem que fiquemos sabendo seu nome, como parece ocorrer com a maioria dos porteiros, ele se compara a um porteiro do inferno, acostumado a abrir a porta ao demônio. A fala parece quebrar o clima sufocante da história e não ter função na narrativa. Depois de abrir a porta e xingar todo mundo, ele se despede de forma aparentemente enigmática: “Não quero mais saber de ser o porteiro do demo. Por favor, lembrai-vos do porteiro”. E some para não voltar mais.
Shakespeare não era um autor capaz de perder uma cena, sobretudo em meio a uma das maiores carnificinas da história do teatro. O que significa esse porteiro em meio às bruxas e fantasmas que tomam conta de tudo em volta de Macbeth, sua mulher e toda a corte escocesa?
Os comentadores nunca chegaram a um acordo. Para alguns é apenas uma tentativa de arejar o ambiente pesado das mortes e do sangue que mancha as mãos dos personagens. Um intervalo para respirar. Para outros, uma fala incluída por um ator hoje esquecido, que tentou aumentar sua participação com um monólogo aparentemente sem sentido.
Talvez haja outra explicação. Estamos tão impressionados com a violência à nossa volta, com a sombra do mal e o exercício da força que a todos acovarda, que perdemos a capacidade de ouvir as vozes de pessoas normais. Esperamos sempre o pior. Só damos atenção ao que parece suplantar a vida comum em nome da exceção e da manifestação de poder. Só ficamos ligados ao barulho e à fúria.
O mundo não pode ser definido pelas bruxas, mas pela natural convivência de pessoas comuns, como os porteiros. O personagem de Shakespeare parece nos alertar para o que estamos deixando de lado com a obsessiva sede de espetáculo, mesmo o mais horrendo deles. Um homem que exerce o poder para se manter no comando, merece mais interesse que uma pessoa que faz seu trabalho. É mais fácil dar atenção aos demônios que aos porteiros. Estes, quando incomodarem, deverão ser investigados, tratados com desdém e ameaçados.
Quando o porteiro de Macbeth insiste aos espectadores que se lembrem dele, talvez esteja mandando um sinal de humanidade. Estamos passando pela cruzada dos crimes que tomam conta dos nossos dias, amargando a briga pelo poder e pelo dinheiro acima de qualquer valor moral, suportando a retirada de direitos e liberdades, mesmo com toda a resistência. É o sinal dos tempos definidos pela vitória fraudulenta que tudo legitima.
Mas não devemos nos esquecer dos porteiros. Em sua simplicidade eles são o que nos resta de esperança, quando as bruxas foram espantadas, os fantasmas afastados e os espectros iluminados pela luz da razão e da justiça. Para os porteiros, homens comuns e trabalhadores, gente como a gente, a vida não é feita de barulho e fúria. E ainda: ela significa muita coisa além da ambição.
Por essa razão, esqueçam-se dos donos do poder que destilam ódio e vociferam como demônios quando contrariados, espumando pelo canto da boca. A voz da verdade não precisa de fúria para se fazer convincente e é capaz de desmoralizar lacaios em cargos de poder que tentam silenciá-la às custas de intimidação. Afastem as bruxas do horizonte. Ouçam os porteiros.
Edição: Elis Almeida