Sentimento antipolítica e antiesquerda foi usado para garantir agenda neoliberal
A aprovação entusiasmada do pacote econômico de Paulo Guedes por parte da mídia empresarial evidencia a raiz da miopia que tomou conta do país. A chamada imprensa comercial foi capaz de dar férias à sua indignação em relação aos ataques destemperados que vinha sofrendo do presidente Bolsonaro, para soltar editoriais de celebração e convocar os totens do mercado de sempre para passar pano para o ministro. Foi uma festa, uma celebração à subserviência.
Há uma história por trás dessa aparente esquizofrenia ou dupla personalidade política dos meios de comunicação, que por vezes rosna na pauta dos costumes para depois ganir sabuja na economia. O diagnóstico serve para a imprensa corporativa, mas não apenas a ela. Impulsionados pelo ódio ao povo, pelo sonho de retomar o poder que sempre garantiu privilégios históricos e pelo projeto de destruir o estado brasileiro em sua vertente social, criou-se a fantasia composta de um monstro de duas caras. Ambas odiosas.
De um lado, a face da ignorância, da violência e da barbárie, ancorada no negacionismo absoluto de todos os valores de civilização: o conhecimento, a cultura, a tolerância. É o lado do rosto que mostra sua estupidez a cada dia, na retomada da censura, no ataque à imprensa livre, na perseguição da cultura, no rompimento de laços históricos com parceiros na região, na defesa de agendas atrasadas em valores morais e comportamentais.
Este campo vem sendo tocado por um time inacreditável de pessoas despreparadas em termos intelectuais e éticos, que são tomados por vezes pelo lado patético de sua expressão, naturalizando como excentricidades o que são perigosos atos de desvario. Entre as atitudes do grupo estão ações destrutivas que vêm ocorrendo no campo da educação, da cultura, da ciência e tecnologia, das relações internacionais, do meio ambiente, do respeito aos povos originários, das políticas de inclusão e dos direitos humanos.
Uma agenda da vergonha para uso interno – mesmo entre conservadores racionais, que se recolhem constrangidos – e externo, o que vem isolando o país inclusive no seio da própria direita. Afinal, uma coisa é ser conservador de carteirinha, outra é defender o retorno da ditadura como solução política e enaltecer torturadores. O presidente brasileiro tem sido considerado um estorvo em seu próprio campo, incomodando aliados que se esquivam de seu dedo podre, que pode comprometê-los em seus países e disputas eleitorais.
Do outro lado, o governo expõe sua face autodefinida como moderna, que aposta nos mecanismos liberais de mercado e seus satélites sociais inimigos da solidariedade, com a extinção de direitos de toda ordem. Foi investindo neste setor que o pacto para eleição do presidente se armou. Em outras palavras, enquanto se toleravam abusos no chamado campo dos costumes – na verdade uma agenda regressiva perigosa – o setor rentista nacional e internacional retomava sua posição no comando da economia.
Davam-se alguns anéis da liberdade pessoal (que certamente não chegaria a incomodar setores mais abastados, preservados em seus muros e pouco afeitos ao moralismo) para garantir a agenda econômica da desregulamentação, da extinção dos direitos trabalhistas e da desnacionalização de setores estratégicos. De baciada, recuperavam-se até mesmo as mais atrasadas pautas de setores como a mineração (ou, em escala mais “miliciana”, os garimpos) e os bandeirantes da soja e do gado, abrindo as fronteiras das florestas tropicais e de áreas de preservação.
A má fé por trás dessa dicotomia é clara: o sentimento popular antipolítica, sobretudo antiesquerda, foi utilizado como instrumento eleitoral, principalmente pela narrativa convencional da imprensa familiar, para garantir que a agenda econômica prosperasse. Bolsonaro, Damares, Ernesto, Ricardo e Abraham, entre outros – incluindo-se aí generais de pijamas – eram apenas um biombo para interesses maiores que a soma da estupidez de cada um deles. Algo que seria, com o tempo, soterrado pela lama dos interesses do mercado.
Mas o tiro mascou na hora e vez do projeto econômico. O lado violento do autoritarismo mostrou que democracia não se separa em fatias. Vem tudo no mesmo pacote. Para dar conta das propostas de Paulo Guedes, é preciso não apenas comungar como o lado sombrio da força bolsonarista, mas elevá-la a plano soberano. O conjunto de medidas econômicas anunciado pelo ministro só é possível nos limites dados por um governo autoritário em sua origem. A inspiração de Guedes, como se sabe, vem do período ditatorial chileno sob Pinochet. A ditadura não é um problema, é uma condição.
O projeto, elogiado pela mídia hegemônica de forma quase incontida, não esconde seu propósito. Vai reduzir gastos sociais, acabar com vinculação específica de recursos na saúde e educação, desvalorizar os serviços públicos, congelar – a até mesmo reduzir – salários. Acaba ainda com fundos públicos destinados a políticas estratégicas para fortalecer o caixa do pagamento da dívida. Com a retórica da economia de gastos, tira dos serviços essenciais para garantir o pagamento superávit para honrar o carnê de serviços financeiros.
O superministro pode até contar com a torcida do mercado e a conivência da mídia, mas só leva adiante seu programa se agradar deputados e senadores. Para isso joga algumas moedas de troca, como a fingida defesa da extinção de pequenos municípios que são base eleitoral dos parlamentares, e a promessa de recursos para emendas. O pacote, no entanto, é em sua essência recessivo, privatista, não distributivo, regressivo, concentrador e financista. Em outras palavras, um espelho de tudo que o governo sinaliza em sua vertente ideológica.
Perverso de um lado, ineficaz de outro. Tudo que a ausência de liberdade tira da sociedade em sua vitalidade, empobrece a vida da maioria das pessoas na vida material.
De um lado a violência nas relações sociais; no campo econômico, o mesmo método. Na face política, o autoritarismo explícito; o mesmo na definição das medidas econômicas. Desprezo à solidariedade num campo; igual afastamento de valores igualitários no outro. O que a estupidez consolida de um lado, as relações materiais se fortalecem de outro. Como se vê, não há meia democracia. Nem meia ditadura. É para onde estamos indo. Na verdade, é onde nos encontramos.
Edição: Elis Almeida