Crítica, memória e criação ficam, agora, longe da lógica de gestão da TV
Há muitas maneiras de ser desonesto e no Brasil de hoje temos experimentado todas elas de forma escancarada. A mais explícita forma de mentir é sendo aparentemente verdadeiro. É o que o governo Bolsonaro está fazendo com a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Com o falso argumento de que ela não dá lucro ou audiência, passou a integrar a lista das empresas privatizáveis. Ou seja, que serão entregues de mão-beijada para o mercado a preço de banana podre.
O que não é dito, na aparente transparência do processo, é que comunicação pública não existe para atender a lógica do mercado das empresas privadas do setor, mas da cidadania e de suas demandas específicas. Como saúde pública e educação pública, que tratam de direitos e não de lucro. Comunicação pública existe para prover direitos por cultura e informação plural, independente, crítica e de qualidade. Na verdade, o que está por trás do ataque à EBC é a persistente alergia em tratar de tudo que é público e envolve inteligência, conhecimento e direitos.
A outra forma de afrontar o dever de zelar pelo interesse coletivo é esvaziar as áreas que têm DNA público e são constituídas organicamente com a presença da participação social. É algo menos explícito e mais canalha. Em vez de confessar sua intenção, apelam para a inexorabilidade dos seus resultados. Assim, no primeiro momento, defende-se da boca para fora o setor e depois puxa-se o tapete das condições de funcionamento das empresas e instituições, para apresentar então o quadro inevitável de seu fechamento ou privatização.
É o que o governador Romeu Zema está fazendo, no mesmo setor da comunicação pública, com a Empresa Mineira de Comunicação, a EMC, formada pela Rádio Inconfidência e Rede Minas de Televisão. Depois de anunciar o fechamento da banda AM da Inconfidência e voltar atrás pela pressão da sociedade, mudou de tática e está minando por dentro, corrompendo seus objetivos, mudando o estatuto e retirando a presença da representação da sociedade de sua estrutura, como define a lei de criação da empresa.
No caso da Inconfidência é possível perceber pelo menos dois movimentos articulados para enfraquecer a emissora de mais de 80 anos de existência e localização privilegiada na memória afetiva do ouvinte mineiro. O primeiro foi adiar o fim da AM, mas apontando para a exigência técnica futura de mudança. Assim, esvaziou-se a reação imediata com a estratégia de deixar patente que é tudo apenas uma questão de tempo. O que é mais uma mentira.
Estudos apresentados por especialistas em radiodifusão, inclusive em audiências públicas, demonstram que existem soluções tecnológicas viáveis para a continuidade e sustentabilidade da AM, o que permitiria a ela cumprir seu papel social. Como todo ouvinte de rádio sabe, as emissoras com essa faixa de transmissão e potência possuem maior alcance e atendem à especificidade de programação menos comercial e mais próxima da cultura popular.
A segunda onda de esvaziamento da emissora atinge seu coração: o resultado do trabalho que chega ao ouvinte. A Inconfidência desidratou sua programação, retirando conquistas que foram sendo sedimentadas com o tempo. Com o argumento, que não se confirma na atualidade, de que a audiência é resultado da mesmice do sucesso musical imposto pela indústria (o que não se observa na nova matriz digital de produção e distribuição), a diversidade estética foi banida e a responsabilidade jornalística colocada de lado.
A rádio perdeu sua identidade estética e sua relevância informativa. Alguns dados são muito claros. O primeiro deles foi o afastamento de dezenas de colunistas reconhecidamente representativos e bem informados, que tratavam de temas relacionados à cultura e à sociedade. Detalhe: eram todos voluntários. Não ficou um para contar história.
O segundo elemento destrutivo posto em ação foi a interrupção de programas que mesclavam música e informação, nivelando o polo musical por um gosto ultrapassado e extinguindo o polo jornalístico, inclusive da área cultural. Com isso, perdeu-se em diversidade artística e em pluralidade de vozes sociais que participavam de diferentes momentos da programação.
Outras atribuições históricas da rádio também foram aniquiladas, como o papel de renovação da plataforma de lançamento de novos discursos musicais e a redução significativa do tempo dedicado ao jornalismo. As novas canções, com seu potencial de experimentação, deixaram de se mesclar com a tradição, no delicado e cuidadoso exercício da formação do gosto, e o noticiário se “chapa-branqueou” e esfriou de forma inacreditável.
Numa reversão absurda de expectativas, o jornal diário da emissora, que deveria ser seu padrão-ouro por se tratar de uma empresa pública, tem sido veiculado em edições gravadas previamente, feitas no dia anterior à apresentação. Em outras palavras, o mais ágil dos meios de comunicação padece na Inconfidência da mais lenta possibilidade de atualização. Música velha (não antiga) entremeada de notícia velha (ou seja, não notícia por definição). Jornal de ontem.
Como tanta astúcia não chega de forma espontânea, já é sabido nos corredores da emissora que o governo prepara um programa de demissão voluntária para capitalizar a insatisfação dos profissionais submetidos a tanta humilhação. O projeto, que ganha últimos retoques, mira sobretudo os radialistas mais experientes, entre eles muitos que trabalham exatamente na AM, que chegaria dessa forma ao fim sem maiores consequências, quase por inanição.
O afastamento voluntário dos servidores e a ausência de novos concursos programados (não se esqueçam que Zema comunga com o ajuste proposto pelo governo federal como forma de renegociar sua dívida com a União) deixaria ainda mais patente o processo de inviabilização do funcionamento da rádio. O conjunto de baixos salários, desrespeito profissional e falta de perspectiva comporia o coquetel que ajudaria a celebrar a extinção do “gigante do ar”, como a emissora foi um dia celebrada. Essa é a conclusão da história: um anão moral derruba um gigante.
Conselho esvaziado
Na Rede Minas a situação não é melhor. A empresa, que desde a última semana é dirigida pelo presidente da rádio Inconfidência, segue o mesmo caminho: perde relevância como televisão enquanto oferece novo desenho institucional mais vertical em sem espaço para a participação da sociedade. Mata a programação que estava no ar e anuncia “novos” produtos sem identidade cultural, enquanto esvazia o papel de seu Conselho Curador, previsto no estatuto da empresa. A dar cobertura a tal projeto, a nova vinculação da emissora à secretaria que tem o turismo como cabeça do sistema e cultura como penduricalho.
Não é um acaso que tanto Zema quanto Bolsonaro tenham tido essa ideia genial de submeter a cultura ao turismo. Mérito para Zema, que saiu na frente: ele é a encarnação da vanguarda do atraso. Na visão dos dois governantes, a cultura, os intelectuais e os artistas são um problema, quase adversários. A tática para enfraquecer um setor que é constituído de crítica, memória e criação é integrá-lo em uma lógica que não passe nem perto disso.
Essa vinculação espúria, que menospreza a cultura para destacar o negócio da indústria do turismo (com seu exotismo, machismo, folclorização e esvaziamento político) já começa a dar cartas em projetos estapafúrdios, feitos de trenzinhos, comidinhas e manipulação da cultura popular para fins comerciais. O que, não demorou muito, chegou à Rede Minas em sua nova linha de programas já anunciada.
A primeira operação foi desmontar a grade construída historicamente para trazer de volta a programação da TV Cultura de São Paulo, em mais uma demonstração do ressentimento tucano de Zema, que se elegeu pelo Novo, mas governa com o PSDB. A segunda ação foi direcionar o jornalismo para cobrir apenas a agenda do governo de forma acrítica, tirando do ar seu principal jornal para abrir as antenas para o programa paulista.
Por fim, o lançamento de novos programas, não por acaso, estrelados por trenzinhos e roteiros turísticos. Quem se lembrar da programação local da Globo Minas não estará longe da realidade: foi de lá que veio o atual secretário de turismo e, nas horas vagas, de cultura de Minas Gerais. Mas é bom reconhecer a legalidade da filiação da programação da emissora ao turismo, já que hoje é o setor que encabeça o sistema cultural do estado, a quem caberia a gestão da EMC.
E é na gestão que a situação se torna ainda mais consolidada. Quem buscar o estatuto da Empresa Mineira de Comunicação no site da Rede Minas vai se deparar, na aba de “transparência”, com um documento caduco. Lá, consta no organograma, está a existência de um Conselho Curador formado por oito integrantes, confusamente paritário, mas com atribuições deliberativas.
A composição do conselho vinha sendo objeto de discussões entre o governo e vários segmentos culturais, profissionais e de representação social, com vistas a sua ampliação e maior pluralidade. O debate foi extinto com a mudança de governo, os setores não foram capazes de manter a mobilização e a composição permanecia inalterada. Mas tudo mudou, sem que a transparência tenha sido respeitada sequer no site, quanto mais na realidade política do setor.
O novo instrumento legal que disciplina a EMC, o Decreto 47.750, de 12 de novembro deste ano, altera tanto a composição quanto as atribuições do Conselho Curador. Em vez de oito representantes, agora são apenas cinco sendo que a sociedade civil tem apenas uma vaga (indistintamente nomeada como pertencente a pessoa de reputação ilibada, de acordo com o governo, responsável por sua indicação) e os funcionários da EMC contam com outra. As demais são cativas do governo. Em vez de ampliar a consulta à sociedade, reduziu-se a participação e garantiu-se, de forma estatutária, a maioria governamental sem contestação. A partida já começa 4x0.
Se a composição retrocedeu em amplitude e representação, as atribuições sofreram ainda mais. É fácil perceber até mesmo pelos verbos utilizados para descrever o papel do Conselho Curador: onde estava “deliberar”, “aprovar”, “autorizar” e “elaborar”, entram agora “opinar”, “subsidiar”, “acompanhar” e “zelar pelo cumprimento”. O Conselho Curador, além de dominado pelos representantes do governo, não tem outra atribuição que a de carimbar as decisões da direção executiva. Não dá nem conselho.
Ainda no campo das mudanças internas, assim como na rádio o ambiente de depressão profissional deve levar à instituição do PDV, na Rede Minas se fala abertamente em férias coletivas em janeiro, com repetição da programação já exibida. Cá, como lá, a ideia é a mesma: mostrar que se trata de uma empresa sem relevância, que pode dar férias aos funcionários sem que a programação seja afetada. A soma de autoritarismo, programação sem viés cultural ou educativo e desmoralização dos profissionais é a porta aberta para o passo seguinte.
A EMC está caminhando para se tornar irrelevante por uma ação determinada, estruturada e covarde. Estão entregando o patrimônio público e negando um direito fundamental à cultura e à informação, em nome de um ânimo anti-intelectual e privatista. O jogo já começou, vários lances foram dados e a sequência, infelizmente, já foi anunciada na forma como a EBC foi jogada no pacote federal das privatizações, como lixo a ser reciclado pelo mercado. A EMC, ainda que com outra estratégia, já está na fila em direção ao mesmo destino.
Bolsonaro é inculto, autoritário e temerário. Zema é inculto, autoritário e dissimulado. Um parece tomado pela raiva, outro pelo medo. Não são sentimentos construtivos.
Edição: Elis Almeida