Em 25 de janeiro, escorreu a onda de lama sobre Brumadinho (MG), matando 272 pessoas. E, como se não fosse suficiente, a mineradora Vale protagonizou outra “onda” ao longo dos meses seguintes: a midiática. A mineradora colocou no ar excessivas propagandas de TV, rádio, Youtube, Google Adds e jornais para dar a sua visão dos fatos. E será essa uma estratégia legítima?
Inúmeras pessoas atingidas pelos rompimentos das barragens consideram que não. Thiago Alves, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), opina que a campanha da Vale é um “falseamento da realidade”, que serve para melhorar a sua própria imagem e não para oferecer informações úteis. “A prestação de contas você faz de forma objetiva para a sociedade e órgãos de controle. Essa publicidade não gera informação aos atingidos e às comunidades”, opina.
Quanto gastou?
É impossível calcular a quantidade de dinheiro gasto com a campanha midiática que está sendo feita pela Vale S.A., mas a reportagem do Brasil de Fato MG levantou alguns valores baseados no preço oficial de anúncios dos veículos, segundo tabela de 2019. Na primeira semana pós Brumadinho, os principais jornais de Minas Gerais veicularam, nos dias 27 e 29 de janeiro, anúncios de página inteira, posicionados logo antes ou depois das matérias de cobertura do crime. Juntos, os jornais O Tempo e Estado de Minas devem ter recebido, apenas nesta primeira semana, R$ 1 milhão, segundo os valores de suas tabelas oficiais de anúncio.
As rádios mineiras também receberam informes publicitários da Vale. Genival Dias, taxista de Belo Horizonte, é ouvinte assíduo da Rádio Itatiaia e relembra que ouvia comunicados da mineradora todos os dias na semana do crime de Brumadinho. “Ela está se preocupando mais em se defender. A Vale deveria reparar vítimas, e não gastar dinheiro com propaganda”, comenta.
Além da Itatiaia, a rádio CBN e a Alvorada também estariam veiculando publicidade todos os dias, segundo seus colegas. O taxista Osvaldo Nobre de Almeida descreve que na primeira semana ouvia comunicados da Vale quatro ou cinco vezes por dia na Rádio CBN. Se a Vale veiculou 30 inserções em um mês, uma média baixa, estaria pagando R$ 124 mil para as três rádios, segundo valores das tabelas oficiais de anúncios desses veículos.
Outra veiculação que surpreende os espectadores são as propagandas no intervalo do Jornal Nacional, da Rede Globo. Um anúncio de apenas 30 segundos custa R$ 847 mil. E há publicidade também nos intervalos do Jornal Hoje, da Globo, que tem o preço de R$ 243 mil por 30 segundos.
Já as propagandas no Youtube e os banners em sites, através do Google Ads, podem custar de R$ 0,10 a R$ 0,40 por visualização, e estas redes estão sendo altamente usadas pela mineradora. Tanto que o movimento Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale fez um vídeo de sátira que imita a publicidade da mineradora. Norteada pela pergunta “O que a Vale diria se fosse sincera?” a falsa publicidade, com a mesma linguagem da real, traz informações que seriam péssimas para a empresa.
"A produção de materiais que imitam a publicidade oficial da Vale é uma estratégia que utilizamos desde a nossa origem. No mesmo espírito, produzimos relatórios de ‘Insustentabilidade’ da empresa, em resposta aos relatórios de sustentabilidade que a Vale lança anualmente”, afirma a equipe de comunicação dos Atingidos pela Vale, em nota. “Queremos contrapor o discurso de que a empresa está resolvendo as questões relacionadas ao meio ambiente e às pessoas, quando na verdade, sabemos que não está”.
Reportagens que deveriam questionar, mas foram vendidas
Dois tradicionais jornais de Minas não se limitaram a vender espaços para anúncios. Em junho, o jornal Estado de Minas publicou a série de reportagens “Brumadinho e Região - Reconstrução”, sobre as benesses que a mineradora Vale estaria fazendo. Títulos como “Depois da Tragédia: novos empregos”, “Vale investe R$ 1,8 bi”, “Vale dobra ajuda financeira” fizeram parte do Projeto Especial de Marketing dos Diários Associados, com 20 matérias que traziam o “lado” da Vale. Não se sabe quanto custou o especial, mas funcionários falam de milhões.
Um ex-jornalista do Estado de Minas comentou com o Brasil de Fato, sob anonimato, que este artifício não é novidade, “sobretudo quando acontecem acidentes como os de Mariana e de Brumadinho”, diz. “Essas grandes empresas encontram terreno fértil para a veiculação desse tipo de material em razão da crise financeira que vivem alguns grupos de comunicação, como os Diários Associados”. “Entretanto”, continua o jornalista, “ao abrir espaço para publicação e produção de conteúdos pagos pela mineradora Vale, o Estado de Minas abdica de alguns valores que o jornalismo responsável exige: independência e compromisso com o leitor”.
Coincidência ou não, o jornal O Tempo lançou o mesmo formato de reportagens especiais vendidas, porém, aparentemente pagas pela Fundação Renova. A fundação, que é controlada majoritariamente pelas mineradoras Vale e BHP Billiton, cuida das indenizações e reparações do crime do Rio Doce - rompimento da barragem de Fundão, Mariana (MG) – e é com o dinheiro das reparações que paga a publicidade. O Tempo publicou 20 matérias na primeira parte do especial “Capítulos do Rio Doce”, e agora publica uma série de vídeos como segunda parte do especial.
Diferente do Estado de Minas, que ocultou o autor das matérias vendidas, O Tempo está produzindo os textos, fotos e vídeos com seus próprios funcionários. Na página de internet principal, o especial tem destaque e é oferecido aos leitores como reportagem comum feita pelo jornal (imagem). Abaixo, na coluna da direita, há mais chamadas para o especial, dessa vez sob o título “Informe Publicitário”. Nas matérias e nos vídeos de O Tempo, nenhuma marca de que o jornal vendeu as matérias, que tem títulos questionáveis como “Rio Doce está em condições semelhantes às de antes de desastre de Mariana”.
A Fundação Renova parece acreditar que são essas as informações que contribuem para o debate público acerca da reparação. Questionada pela reportagem, a Renova responde que as ações obedecem à cláusula 60 do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) que determina que a fundação promova acesso à informação “ampla, transparente, completa e pública, em linguagem acessível, adequada e compreensível a todos os interessados”.
Ética
As matérias jornalísticas “vendidas” não são proibidas no Brasil. Porém, o Código de Ética dos Jornalistas tenta regular a atividade e indica que é dever do jornalista “informar claramente à sociedade quando suas matérias tiverem caráter publicitário ou decorrerem de patrocínios ou promoções”. Maria José Braga, presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), explica que o código de ética é aplicável ao jornalista, já o meio de comunicação, caso um leitor sinta-se lesado, deve ser processado por vias comuns.
“Em tese, deveria haver uma separação bastante clara entre a linha editorial do jornal e a publicidade, mesmo em forma de reportagem. Não existe reportagem paga, para nós, isso é uma forma de enganar o leitor, existe sim informe publicitário que pode estar no formato de reportagem e deve estar identificado”, comenta.
Melhorar sua imagem para se valorizar
Para Thiago Alves, do MAB, a mineradora Vale usa da publicidade para transmutar a sua própria imagem, por motivos principalmente econômicos. “A Vale tem interesses diretos com os acionistas. Nas localidades que ela atua, nunca fez questão de ter um diálogo social. Ela tem uma truculência muito grande. Mas diante dos crimes reincidentes, ela precisa investir no melhoramento da sua imagem”, atesta.
Um indício reitera a opinião de Thiago. A agência de classificação de risco Moody’s, que dá “notas” para as empresas e, assim, orienta aqueles que querem comprar e vender ações, melhorou a nota da mineradora. Logo após o rompimento de Brumadinho, a Vale tinha sido “negativada”. Porém, há dois meses foi novamente elevada para “estável” de acordo com a Moody’s. O argumento da agência é que a mineradora provisionou cerca de U$ 6 bilhões para a reparação, que serão desembolsados entre 2019 e 2021, e ainda assim a empresa continua tendo fluxo de caixa livre positivo, ou seja, lucro.
No entanto, a agência ameaça que a empresa pode voltar a ser rebaixada caso os custos da reparação em Brumadinho fiquem acima das expectativas. A situação pode acontecer se as vítimas não ficarem satisfeitas com os acordos, se os órgãos estatais imprimirem mais multas, se as ações coletivas conseguirem indenizações e reparações maiores que o “esperado”.
Por isso, para garantir uma maior satisfação da sociedade e comunidades atingidas “a Vale tem que gerar publicidade das suas ações”, diz Thiago, “transformar a sua obrigação de reparar um crime em uma coisa boa. Como se a Vale fosse a protagonista e estivesse fazendo tudo de forma voluntária”.
Relembrando: isso já acontecia no caso Samarco
Há quatro anos, apenas um mês após o rompimento da barragem em Mariana (MG), em dezembro de 2015, os leitores de três portais de notícias mineiros – UAI, O Tempo e Hoje em Dia – foram surpreendidos com publicidades da mineradora Samarco. Um banner da empresa “ATENDER. AMPARAR. ACOLHER. Esse é o nosso compromisso”, era apresentado como uma capa nos sites. O portal BHaz estimou que apenas no site Uai a mineradora tenha gastado R$ 24 mil por dia.
A Samarco, em fevereiro de 2016, também fez propagandas de um minuto no intervalo do Jornal Nacional e do programa Fantástico, na Rede Globo. O vídeo foi feito com funcionários e passava a mensagem de que “É sempre bom olhar todos os lados”.
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu um processo contra a Samarco, e diz ter recebido 166 denúncias de cidadãos. “Segundo os consumidores, o anúncio é inadequado por lançar mão de testemunhais dos funcionários da mineradora, o que acabaria velando a verdadeira responsabilidade sobre a catástrofe e constrangendo aqueles trabalhadores”, declara a página do conselho na internet. O processo foi finalizado em maio de 2016 e decidiu que a propaganda deveria ser alterada.
Respostas
A Vale S.A. e os jornais O Tempo e Estado de Minas foram procurados para explicar suas estratégias de comunicação e responder às críticas levantadas, mas não houve respostas até o fechamento desta matéria.
Edição: Joana Tavares