Minas Gerais

EPIDEMIA

Caso Backer: médico responde dúvidas frequentes da intoxicação por dietilenoglicol

Até esta terça-feira (21), foram notificados 22 casos suspeitos de intoxicação

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Primeira epidemia do uso de dietilenoglicol aconteceu em 1937, nos EUA, usado como solvente para um remédio
Primeira epidemia do uso de dietilenoglicol aconteceu em 1937, nos EUA, usado como solvente para um remédio - Foto: Divulgação

São muitas as informações a respeito do dietilenoglicol, substância altamente tóxica encontrada em lotes de cerveja da empresa mineira Backer.  Até o momento, o que é verdade e o que é fake news? Para esclarecer, conversamos com o médico Adebal Andrade, coordenador do Serviço de Toxicologia do Hospital João XXIII, instituição que fica em Belo Horizonte e é referência para casos de intoxicações em Minas Gerais.

Brasil de Fato: Essa é a primeira vez que acontece intoxicação por dietilenoglicol no Brasil?

Adebal Andrade: É uma intoxicação extremamente rara no mundo inteiro e aqui não existiam relatos de casos de intoxicação. É realmente um tema novo para todos. É a primeira vez que casos dessa intoxicação foram notificados e diagnosticados no Brasil.

É possível identificar o dietilenoglicol nas bebidas que consumimos? Tem algum cheiro ou cor?

Não. O dietilenoglicol não tem sabor e é sem cor, como a água. A única característica é que é uma substância extremamente doce, mas a olho nu é quase impossível identificar, caso o dietilenoglicol esteja misturado com outra substância.

Como é trajeto dessa substância no organismo?

Ela pode ser absorvida tanto pela pele, por inalação e, especialmente, pelo trato digestivo. Então, quando o indivíduo a ingere, ela é rapidamente absorvida e cai na corrente sanguínea. Uma vez na corrente sanguínea, ela se distribui por todo o organismo: sistema nervoso central, fígado e rim, principalmente. Esses são os mais afetados.

E o que ela causa no corpo?

É uma substância extremamente tóxica. No trato gastrointestinal, causa náuseas, vômitos e muitos pacientes queixam-se de dor abdominal. Ela provoca cólica abdominal e dor também na região lombar. Isso chama a atenção, porque são as primeiras manifestações que ocorrem, na maioria absoluta dos casos, e esse quadro gastrointestinal ajuda muito no diagnóstico. Essa é a primeira fase.

Alguns dias depois, começa o comprometimento dos rins. Provavelmente isso começa a acontecer logo quando a intoxicação começa, mas a gente não consegue evidenciar. A gente só vai evidenciar uns dois ou três dias depois. O volume da urina diminui, a pessoa começa a urinar cada vez menos e pode chegar até a parar de urinar completamente. Aí se instala um quadro de insuficiência renal. Essa é a segunda fase.

A terceira fase, que é mais tardia e acontece entre o 8º e 12º dia, é o comprometimento do sistema neurológico. Essa fase geralmente está relacionada à ingestão de maior quantidade do dietilenoglicol, mas também é possível que alguns pacientes, mesmo tendo ingerido uma pequena quantidade, apresentem essas manifestações.

A partir daí gera uma fraqueza muscular generalizada da musculatura proximal, que são os membros superiores; na região cervical; às vezes na musculatura que abre os olhos, causando a queda da pálpebra; dificuldade para deglutir, para respirar e fraqueza de membros inferiores.

Recapitulando: são três fases, a gastrointestinal, renal e a do sistema nervoso central. A do sistema nervoso central é a mais grave e a que demora mais tempo para se instalar. Alguns autores detectaram alterações neurológicas que vieram tardiamente, quatro ou seis semanas depois da exposição.

Então, se uma pessoa ingeriu pouca quantidade, ela pode apresentar os mesmos sintomas de uma pessoa que ingeriu grande quantidade?

Olha, é pouco provável. Há uma divergência, mas alguns autores dizem que a quantidade mínima para esses problemas é 1 ml da substância pura por quilo. Mas, em algumas epidemias que ocorreram no mundo, foram encontradas doses pequenas como 0,0014 ml por quilo. Então, parece que além da dose ingerida, que está relacionada à gravidade dos casos, há, ainda, algo relacionado à resposta do organismo do indivíduo.

O antídoto é mesmo o álcool?

Sim. Um dos antídotos e o antídoto disponível no Brasil é o etanol, que é o álcool comum. Só que esse álcool é uma solução especial, usada só em ambiente hospitalar. Não é qualquer álcool e em qualquer quantidade. É álcool administrado por via intravenosa, ou seja, na veia dos pacientes, com controle de dosagens no sangue. É um procedimento delicado e precisa ser feito em ambiente hospitalar.

É verdade que quem bebeu, por exemplo, cerveja contaminada mais cachaça se "salvou"?

Isso da cachaça é verdade, mas não é que "salva" as pessoas. Quando estamos ingerindo isso [bebida contaminada mais etanol], é preciso lembrar que não sabemos nem a quantidade do produto tóxico e nem a do etanol. E quando se toma o etanol não contaminado, de alguma forma, ele protege o indivíduo, mas não sabemos o quanto, justamente porque não sabemos quais foram as quantidades ingeridas. 

Isso, por si só, não trata o paciente. Apenas dá um grau de proteção à intoxicação. Não é porque eu tomei cachaça, ou uísque, ou vodka junto com a cerveja contaminada que eu posso me despreocupar e que isso não vai trazer problema. O etanol tem que ser dado na quantidade adequada para neutralizar o dietilenoglicol, quando for o caso. Nem todo paciente intoxicado vai necessariamente receber o antídoto.

Por quê? Nem todo mundo precisa?

Ou porque o tempo pra usar o antídoto já passou ou porque o caso não precisa... Isso varia de acordo com o quadro do paciente.

As pessoas que forem intoxicadas e não receberem o tratamento adequado podem ter que fazer hemodiálise pelo resto da vida ou ficarem paralisadas?

Eventualmente sim, em ambos os casos. A maioria dos pacientes evolui com a melhora do comprometimento renal, mas uma das possibilidades é a insuficiência renal crônica. Existem relatos de que após 50, 60 dias da exposição, pessoas se recuperaram. Tanto podem ter essas sequelas, quanto melhora total... Nós vamos tratando as sequelas, dependendo do tipo. Se for insuficiência renal, usamos o tratamento dialítico [hemodiálise]. Se for comprometimento do sistema nervoso/paralisia, vai tratar com fisioterapia para recuperar os movimentos.

Já ocorreram casos de intoxicação em outros países?

Tem várias epidemias. A primeira que tem registro foi em 1937, nos Estados Unidos, quando usaram essa substância como um solvente de medicamento e foram vários óbitos. Outras epidemias registradas na Índia, Panamá, Nigéria, na Argentina, Áustria, Bangladesh, entre outros. [Além dos países citados pelo médico, já houve casos na África do Sul, China, Espanha, e Haiti.]

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Atualização: O quadro de saúde das pessoas internadas

Até esta terça-feira (21), de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), foram notificados 22 casos suspeitos de intoxicação por dietilenoglicol. Desses, 19 pessoas são do sexo masculino e três do sexo feminino. Quatro casos foram confirmados e os 18 restantes continuam sob investigação.

Quatro casos evoluíram para óbito, um com confirmação da presença da substância no sangue. As outras três mortes estão entre os 18 casos em investigação. São 15 casos em Belo Horizonte e os demais em Capelinha, Nova Lima, Pompéu, São João Del Rei, São Lourenço, Ubá e Viçosa.

Quem ingeriu a cerveja Backer a partir de outubro de 2019 e em até 72 horas teve náusea, vômito ou dor abdominal associados a sintomas neurológicos e renais deve procurar as Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Em casos de sintomas mais leves, as Unidades Básicas de Saúde (UBS).

Edição: Rafaella Dotta