Em meio ao drama, Zema resumiu uma questão estrutural à coleta de doações miúdas
O povo de Minas Gerais se preparava para marcar um ano do crime ambiental de Brumadinho com uma série de protestos e cobranças de responsabilidades, corando um ano de lutas intensas e muito sofrimento. No caminho, foi colhido por mais um episódio que trazia em sua raiz a mão irresponsável da ganância, a incompetência histórica e o descaso com a natureza e as mudanças climáticas.
Com pelo menos 55 mortes e milhares de desabrigados, as chuvas que caíram sobre o estado nos últimos dias reviveram o mesmo enredo: o crime se naturaliza como tragédia produzida pelo destino. As vítimas são desrespeitadas, quando não responsabilizadas pela própria dor que vão carregar pela vida afora.
Cercado por um espetáculo hediondo de falta de empatia com o sofrimento dos cidadãos, o governo federal mal se mexeu além de ações protocolares (Bolsonaro manteve agenda com duplas sertanejas em vez de se deslocar para o estado no primeiro momento) e Romeu Zema foi capaz de afirmar que estava “tudo sob controle”. Não bastasse o diagnóstico cruel, foi capaz de se animar a lançar sua candidatura à reeleição, atropelando o calendário eleitoral e o respeito humano.
O governador deu a chave de seu comportamento insensível antes mesmo de abrir a boca para manifestar sua cegueira voluntária com a destruição que afligia os mineiros. Na coletiva em que se comunicou pela primeira vez com a população, tinha ao lado agentes financeiros, empresários da construção civil pesada e entidades patronais, como a atestar a absoluta indigência administrativa e gerencial da instituição que cabe a ele comandar.
Romeu Zema e seu Partido Novo gostam sempre de apontar a eficiência da iniciativa privada na condução de seus interesses. Dessa vez, no entanto, extrapolou. Em meio ao drama da vida real, reduziu o Estado a um passador de pires e resumiu uma questão estrutural à coleta de doações miúdas. Incentivador da flexibilização, Zema terceirizou a responsabilidade do governo.
De quebra, pelos personagens destacados, a situação parecia mostrar que havia ali uma oportunidade de negócios. Não é um acaso que o episódio tenha sido descrito como uma “guerra civil”. As guerras sempre foram lucrativas para o capitalismo, como mostra repetidamente a história dos Estados Unidos, tanto para a indústria armamentista como para os projetos de reconstrução nacional, inclusive dos inimigos. Negócios, sempre, à parte.
Moradores de Belo Horizonte e de outras cidades atingidas clamam, há décadas, por ações para impedir que essa situação anunciada se repita a cada ano. Soluções viáveis sempre são colocadas de lado em favor de grandes obras que não enfrentam o problema em sua real dimensão. Não se trata apenas de ações de engenharia, que certamente agradariam os convidados do governador, mas de pelo menos cinco níveis de mudanças profundas e necessárias.
A primeira delas é na área de moradia, com o investimento na construção de casa em regiões seguras, próximas ao mundo real da economia, do comércio e da vida social. Não se pode mais conviver com a estratégia de empurrar o trabalhador para a periferia da periferia ou para encostas instáveis. Trata-se de uma transformação na lógica da propriedade urbana, em favor das pessoas e da qualidade de vida e não da especulação imobiliária. Isso significa ainda mudar a lógica do transporte público e tornar mais diversa, segura e interessante a paisagem humana das cidades.
A segunda é a mudança de paradigma técnico, deixando de lado novas obras de criação de galerias e canalização, em favor de soluções que apontem para o respeito com os cursos d’água e retirada das coberturas dos falsos “boulevards”, que espremem e retificam itinerários naturais das águas. É preciso investir na criação de parques margeando córregos e rios, na construção de caixas de contenção, telhados verdes e incentivo ao reaproveitamento das águas das chuvas. Sem falar de ações ainda mais basilares, como saneamento, tratamento de esgotos e coleta seletiva de lixo.
A terceira se dirige ao incentivo e institucionalização de instâncias populares de definição, gestão e controle de políticas públicas urbanas. A complexidade dos problemas das cidades há muito explodiu a capacidade de uma condução apenas tecnocrática ou mesmo das instâncias tradicionais existentes. A questão é de transformação política. Sem a presença da capilaridade das organizações que de fato vivem os problemas, dificilmente será possível apresentar soluções eficientes para a melhoria da qualidade da vida nas cidades.
A quarta é a retomada da racionalidade das medidas de preparação para a crise climática, com fortalecimento da pesquisa e valorização do saber. A cruzada anti-intelectual e anticientífica tem causado um dano muito maior que a mera ignorância, isolamento internacional e atraso tecnológico. Os planos para o enfrentamento da mudança climática correm contra um relógio que não permite mais acertos e não marca o tempo à frente, mas o horizonte que nos resta. A cada dia é um minuto a menos. O negacionismo arrogante, em alinhamento com os EUA, além de cobrar vidas, pode levar a economia brasileira ao colapso.
A quinta transformação necessária talvez seja a mais radical e se liga à valorização de uma cultura menos consumista, menos geradora de descartes, mais solidária e ligada aos ciclos naturais da vida e da natureza. É aqui que surge o que talvez seja hoje o grande desafio da transformação da sociedade: a comunhão de projetos coletivos e democráticos de igualdade e liberdade com a revolução pessoal em direção à convivência mais harmônica com as exigências do nosso tempo.
Não teremos um mundo melhor sem pessoas melhores. Lição que chega com as chuvas.
Edição: Elis Almeida