Não se negocia com empresários que vêm ajudando a destruir o arcabouço de proteção do trabalho
Um fantasma ronda o mundo da política: a busca do centro como saída para todos os impasses. A metáfora do equilíbrio, da equidistância entre dois extremos, da capacidade de dialogar produtivamente com os adversários pode ser tentadora. Nas atuais circunstâncias, no entanto, responde a um projeto de poder que é nitidamente autoritário em política, discriminatório em direitos humanos e neoliberal em economia.
A sociedade não está dividida entre dois polos de radicais com sinal trocado, à espera de um conciliador capaz de criar um entendimento apaziguador, tanto na vida pública quanto no ambiente humano das famílias, amigos e colegas de trabalho. Menos ainda se o pretenso salvador da lavoura ética for convocado entre os mauricinhos da antipolítica, coadjuvantes ressentidos por não terem sido carregados nos ombros na última eleição ou seguidores da convocação midiática por uma purificadora autocrítica das esquerdas.
A divisão hoje é muito mais profunda. De um lado há um projeto explícito de concentração de renda, desnacionalização das riquezas estratégicas, desvalorização do trabalho, ataque à democracia, submissão internacional, destruição do meio ambiente, desrespeito com o conhecimento, achincalhe aos direitos humanos e violência como política de Estado. No campo dos valores, a teologização das relações sociais, o reacionarismo moral e a censura como forma de prover investimento em bens simbólicos.
De outro, ainda que devedor de maior consistência programática (a urgente necessidade de passar da oposição à proposição), há um projeto que mira a igualdade, a inclusão, a distribuição de renda, o respeito à natureza, o fortalecimento dos direitos humanos, a soberania nacional, o protagonismo nas relações internacionais e a provisão de serviços públicos universais, acessíveis e de qualidade. Em matéria de valores imateriais, o reconhecimento da pluralidade e o incentivo à crítica e à experimentação no campo das artes e do saber.
O que fica claro, na simples enumeração dos dois programas, é que um lado não conversa com o outro. Pensar que existe uma possibilidade de diálogo tem sido um discurso fácil, que apela para outra forma de separação, igualmente falsa: os interesses materiais da economia e os projetos impalpáveis dos costumes. Para setores que se julgam portadores de um rumo para a economia, que acentue ainda mais a onda neoliberal e neoescravagista, parece ser um jogo aceitável trocar a civilização pelo lucro. O resultado tem sido, historicamente, ficar sem os dois lados. Um mundo sem coração e um coração sem lugar no mundo.
Os apelos à tolerância precisam ser entendidos a partir dessa realidade. Não se conversa com fascista, não se senta à mesa com defensores de ditaduras, não se dialoga com milicianos, não se passa pano para a censura. Da mesma maneira, não é viável negociar com empresários que vêm ajudando a destruir o arcabouço de proteção do trabalho, não parece ser produtivo levar em consideração uma política externa que fragiliza o país no concerto das nações, não é responsável, nem mesmo em matéria de negócios, apoiar ações destrutivas do patrimônio natural.
O que os defensores de um centro inviável parecem propor é uma tradução de seu projeto em ação – executado eficientemente pelo governo Bolsonaro com o pior time que foi capaz de convocar, depois do pontapé dado por Temer – em termos mais brandos e palatáveis. Acreditar que existe uma conta de chegada entre os interesses do capital de forma mais ampla e certa contenção da estupidez é o máximo a que chegam. A tarefa de se livrar do monstro por subterfúgios higiênicos, no entanto, dos que o puseram lá. À esquerda cabe derrotá-lo frontalmente, não compor em nome de uma geometria política constrangida.
As disputas que hoje tomam a sociedade têm, por isso, um lado bastante positivo. Apontam propósitos inconciliáveis, diferentes visões de mundo e projetos distintos para o país. A chamada radicalização, quando deixa de lado o território do ódio inconsequente do anonimato, a inspiração inculta da estupidez e a valorização do individualismo exibido e politicamente analfabeto, pode não ser um impasse, mas uma possibilidade. O que falta não é diálogo, mas clareza de intenções.
Por enquanto, o melhor é gastar energia na oposição sistemática e incansável aos governos e suas políticas, no fortalecimento das alianças verdadeiras no campo da esquerda e na construção de propostas consistentes em todas as áreas. Travar o combate político e do saber; vencer pela mobilização, pela estratégia e pelo argumento. Não é hora de perder tempo conversando com fascistas nem de dar a outra face. Quem acha que chamar o atual governo de fascista é exagero ou incorreção histórica, talvez prefira usar o termo nazismo, com direito a citação de Goebbels.
Edição: Elis Almeida