Minas Gerais

Exploração

Artigo | Trabalho Infantil na Literatura Brasileira

Muitas situações retratadas nos livros de antigamente coincidem com a atualidade

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
"O curioso é que, apesar de ter que trabalhar muito, Valtinho é considerado um 'moleque de rua' e não um trabalhador nas ruas" - Valter Campanato/Agência Brasil

Sendo um fenômeno multifacetado e dinâmico, uma vez que transmuta no decorrer da história, várias formas de trabalho infantil foram representados na literatura brasileira.

Quase desaparecidos na atualidade, os engraxates ocupavam as ruas dos centros comerciais das grandes e pequenas cidades do país, envolvendo um contingente enorme de crianças e adolescentes.

Explorando a literatura infantojuvenil brasileira, encontramos o romance social Tonico, obra de Rezende Filho (1986), publicado pela Coleção Vagalume, que narra a história de Tonico e do engraxate Carniça, apelido de um morador de rua, seu amigo. Sendo uma das modalidades do trabalho infantil nas ruas, as desventuras dos amigos, em muito, coincidem com os atuais, como veremos a seguir:

Tonico que, aos quatorze, perde o pai, e se vê diante de algumas perguntas: “Como minha mãe vai comprar comida para casa? E roupas para gente? E o dinheiro para o meu cinema”? E, mal enterraram o seu pai, a sua mãe e o seu tio paterno, lhe chamaram para uma conversa.  A mãe iniciou dizendo que, de agora em diante ele seria o homem da casa e, o seu tio, incumbiu-se de dizer a Tonico que o mesmo já possuía idade suficiente para trabalhar e ajudar a mãe.

Também lhe informaram que iria estudar à noite, e que conseguiriam a vaga para ele, mesmo sendo a escola noturna destinada a adultos. O tio, que ainda adolescente, também havia se incumbido da função de arrimo de família, “virou-se para o menino e botou uma mão no seu ombro. – É ou não é Tonico? Você já não é um homem? Vai deixar sua mãe sem ajuda?”.

No trabalho, em uma loja, além de reservar-lhe os piores serviços, ralhavam e o humilhavam todo o tempo. Tonico ficava aflito ao lembrar-se da escola e ao ver os colegas saindo das aulas e se dirigindo ao campinho pra jogar futebol. “Quando a garotada descobriu que ele estava trabalhando na loja, aí que a coisa desandou. Chegavam aos três e aos quatro e chamavam da calçada. Tonico olhava de lado, pegava os velhos distraídos, e lá ia bater papo”.

Nesses encontros, Tonico estreitou amizades com um “moleque de rua”, de nome Valtinho, mas que, por ter os dentes todos podres, era conhecido por Carniça. Este, além de gozar da “liberdade da rua”, também engraxava sapatos, dentre outras atividades, para a sua própria sobrevivência. Com Carniça, Tonico aprendeu a fumar, a beber e percebeu que poderia ganhar mais dinheiro engraxando sapatos e vendendo jornais.

A amizade entre Tonico e Carniça foi rechaçada pela família, embora o menino tenha explicado que, na rua, Carniça trabalhava muito, não sendo o vagabundo que falavam. Para tentar reabilitar Tonico, a família trocou-o de emprego. Ele passou a trabalhar na farmácia, cujo dono possuía um perfil mais humanitário. Também o matricularam na escola noturna, coisa que até então não haviam feito. Mas nada adiantou. Tonico estava mesmo decidido a vender jornais, a engraxar sapatos e a viver nas ruas como seu amigo.

Assim que seu camarada confeccionou para ele a caixa de engraxar sapatos, Tonico executou seu plano de fuga. Em seu primeiro dia de trabalho nas ruas, o menino passou por várias desventuras. Seu primeiro cliente não lhe pagou e saiu rindo, a seguir foi procurar o galpão onde Carniça disse que dormia e não o encontrou, e, ainda por cima, teve que sair do local corrido, dado que outros meninos que lá se encontravam não aceitaram a sua presença. Também apanhou de outros engraxates, uma vez que tentou engraxar sapatos em pontos em que já havia “donos”.

A história termina com Tonico voltando para casa, com a família redimida do erro. “O menino havia recebido a sua primeira lição de vida. Mas havia dado também uma lição na família”.

No caso de Tonico, nota-se que o falecimento do pai provedor provoca no garoto inquietações sobre as condições de sobrevivência da família, assim como justifica, perante o grupo familiar e a sociedade em geral, a necessidade do trabalho da criança para efeito de recomposição da renda do grupo. Também neste caso, a ausência paterna como principal provedor pode se dar por motivo de abandono da família, a incapacidade deste em cumprir sua função devido ao desemprego, incapacidade física, ou mesmo ao alcoolismo.

Essa inserção precoce da criança e do adolescente no mercado de trabalho, seja o formal ou o informal, que também promove uma responsabilização atemporal na criança, de acordo com Ude Marques (2001) promove uma inversão dentro do ambiente familiar, dado que a criança é adultizada e, de certa forma, também o adulto é infantilizado.

Observem que Tonico foi, de repente, projetado a “homem da casa”. Ao fazer isso, sua mãe, dentro da hierarquia de uma família patriarcal, coloca-se numa posição inferior à do filho.

Destaca-se também o fato de que, mesmo a família tendo se preocupado em arrumar um trabalho socialmente aceito para o filho, que não o trabalho dos chamados ‘moleques de rua’, entretanto, ao ser afastado do convívio com a família e do ambiente escolar, Tonico ficou desprotegido e, portanto, mais vulnerável.

O trabalho abriu, de repente, para ele, um mundo para o qual ele ainda não havia desenvolvido defesas e não estava ainda preparado para enfrentar. Seus sonhos eram com a escola e o futebol, sua realidade era a de um trabalhador mal remunerado e humilhado.

A história também nos revela outro aspecto do problema, o trabalho infantil nas ruas. Observem que o colega de Tonico, Valtinho – cujo codinome Carniça indica preconceitos que resvalam em sua origem étnica e sobre a sua situação de rua, na qual se encontra; embora trabalhe muito, as atividades que ele executa (a venda de jornais, os serviços de engraxate, etc.) não são consideradas como trabalho.

Ressalte-se que o trabalho nas ruas é considerado como uma das piores formas de trabalho, uma vez que expõe a criança e o adolescente a toda espécie de violação de direitos.

O curioso é que, apesar de ter que trabalhar muito, Valtinho é considerado um “moleque de rua” e não um trabalhador nas ruas, ou seja, embora seja a vítima de uma violação de diretos, ele acaba sendo estigmatizado, quando não criminalizado, como é o caso, hoje em dia, dos milhares de adolescentes recrutados pelo tráfico de drogas.

Esses, embora estejam sendo explorados por adultos e submetidos a um dos piores tipos de trabalho infantil, em vez de serem encaminhados aos serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social no âmbito do SUAS, por exemplo, são conduzidos ao sistema socioeducativo e, muitas vezes, têm a sua liberdade cerceada. Dessa forma, a repressão ao ato infracional prevalece sob a garantia de proteção social aos adolescentes e suas famílias.

Pelo exposto, podemos concluir que, assim como a música e as outras artes, a literatura pode nos ajudar a compreender as complexidades do fenômeno do trabalho infantil, bem como, por serem meios estéticos, possibilitam uma abertura de diálogo com as crianças, os adolescentes e mesmo as famílias envolvidas no mesmo.

Colabore conosco, indique alguma obra da literatura brasileira que aborda de alguma forma o trabalho infantil para que possamos comentar. Ou, se preferir, envie o seu próprio comentário para publicarmos.

Dimas Antônio de Souza é professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

Edição: Elis Almeida