Demorou, mas o Brasil percebeu que não tem presidente da República
Demorou, mas o Brasil percebeu que não tem presidente da República. E não é de hoje. A atuação de Jair Bolsonaro frente à pandemia de Covid 19 revelou que não se pode esperar nada do ex-capitão que não seja a sensatez de não atrapalhar. Ele não sabe comandar, não entende de saúde pública, tem péssimos assessores diretos e não carrega espírito público.
No entanto, por um vício centralizador próprio da nossa história, ficamos sempre à espera de uma atitude que venha do poder federal como forma de ordenar as ações a partir de uma linha racional de comando. O que não vale no caso de Bolsonaro. Mesmo numa estrutura que concentra poder excessivo no nível federal, é preciso criar novas formas de tomada de decisões e implementação de políticas que serão responsáveis pelo futuro do país.
As primeiras atitudes e declarações do presidente frente à pandemia deram conta não apenas de seu limite intelectual e ético para cumprir seu papel, mas de seu absoluto comprometimento com uma pauta anti-humanista e perigosamente equivocada no aspecto técnico e comprometida com agentes econômicos estruturalmente autocentrados. Resultado de um governo que despreza o saber e o conhecimento, as primeiras medidas tiraram do país a pequena vantagem em termos de tempo para se preparar para uma ameaça que explodiu do outro lado do mundo.
Decisões procrastinadas, politização de questões sanitárias urgentes, incapacidade de priorizar o interesse público frente aos vorazes agentes econômicos e, sobretudo, ignorância atravessada de paranoias conspiradoras deram ao governo brasileiro o isolamento e condenação em todo o mundo. Para coroar, Bolsonaro conseguiu mesclar uma lambança sanitária (convocar protestos e distribuir afagos) com uma boçalidade política (jogar contra a democracia num momento de crise e necessidade de união). Assumiu uma patente para a qual vinha se preparando a mais de um ano: o pior chefe de Estado do mundo.
O país se tornou internacionalmente uma nulidade, quando não uma ameaça no alinhamento necessário ao combate a uma doença que não obedece fronteiras de qualquer natureza. Situação que foi agravada pelo papel de liderança regional em termos econômicos e sanitários, que seria de fundamental importância geopolítica junto às nações irmãs da América do Sul. Mais que se isolar, o que já seria grave, o Brasil se apequenou no concerto das nações.
Os demais poderes da República até que tentaram – sem brio suficiente – propor uma retomada do preceito constitucional que indica a convivência harmônica de poderes independentes. Presidentes do Judiciário e Legislativo tiveram como interlocutor um ministro, enquanto seu chefe teimava em amenizar a situação e culpava a imprensa.
Ainda que elogiável, a iniciativa dos chefes dos poderes acabou sendo marcada pela mesma perspectiva essencialmente submissa e constrangida em sua limitação. STF e Congresso não se bateram de forma determinada contra a ameaça à democracia nem assumiram de maneira destemida a urgente convocação ao contrapoder inadiável frente ao colapso das instituições.
O que a pandemia do novo coronavírus parece indicar é um desvio nesse rumo elegante demais para tanta patada antidemocrática e potencialmente genocida do governo federal: a urgência da ocupação de fato do espaço do poder executivo por parte de outras instâncias federativas. Está claro que Bolsonaro, deixado livre em sua inconsequência, vai levar o país ao caos sanitário, político e econômico. Não se pode assistir a isso sem fazer nada ou ficar esperando um arranjo no andar de cima.
Com isso, a atual situação brasileira convoca os gestores estaduais e municipais a deixar de lado a falsa hierarquia da federação brasileira e partirem para a ação de defesa de seus cidadãos. Cabe aos prefeitos e governadores, na vacância de fato da presidência, assumir o poder e a coordenação de todas as ações. Esperar que venha algo de racional ou responsável do governo federal é uma atitude que já não se sustenta mais na realidade.
A atitude dos gestores estaduais e municipais, nesse momento, vai inscrever seus nomes na história: para o respeito ou para a infâmia; para a coragem de decisões firmes ou para fraqueza das conveniências; para a afirmação moral do espírito público ou para a leniência frente aos valores de um individualismo irresponsável do cada um por si.
O país, apesar da desgraça de ter em seu comando um homem menor e despreparado, pode contar com alguns ativos que precisam ser valorizados. O que há de positivo até agora é resultado desse patrimônio. Trata-se do grupo de técnicos preparados e conscientes de seu papel, de profissionais de saúde qualificados e de um sistema público universal, equânime e ordenado, mesmo com todos os ataques ideológicos e cortes de recursos.
O SUS, seus profissionais da ponta da assistência, técnicos e formuladores se postam, junto à resistente ciência brasileira como barreira que vem contendo a estupidez. Conta, para isso, com características definidoras do povo brasileiro, a solidariedade e espírito de luta, para fazer frente ao vírus e suas consequências.
É com esse arsenal de saber, luta e empatia que os prefeitos e governadores devem contar. Quanto a Bolsonaro, a tarefa que fica é como torná-lo, e a todos que lhe prestam vassalagem, uma impossibilidade no futuro do povo brasileiro. Mas temos, no momento, assuntos mais sérios para tratar. Os adultos precisam voltar para a sala.
Edição: Elis Almeida