Minas Gerais

Coluna

Cuide de quem cuidou de você

Imagem de perfil do Colunistaesd

Ouça o áudio:

"Marcados pela dimensão extremamente egoísta e competitiva da sociedade capitalista contemporânea, teimamos em ver o velho como um estorvo, alguém que “'deixou de ser'” - Mídia Ninja
A forma como idosos estão sendo considerados é sinal de esquecimento fundamental da dívida com eles

A maior lição da pandemia vai além da saúde e da economia. Temos que nos manter vivos e, para isso, seguir as orientações que emanam da melhor ciência criada pelo engenho humano. Precisamos estar atentos à garantia de continuidade do mundo material, e por isso ter a responsabilidade de preservar as condições de vida para todos. No entanto, o grande imperativo para a humanidade é a atenção ao que nos faz pessoas: o sentido de amor ao próximo.

E isso diz respeito a todos, em todos os momentos do nosso conturbado tempo de máscaras que cobrem o rosto e escondem o medo. Não há maior prova de humanidade que o senso de comunidade, de compartilhamento, de interdependência. Nunca isso ficou tão claro como agora: defender a própria vida com o isolamento social é uma forma de acreditar que a vida do outro vale tanto quanto a minha. Há um fio invisível e frágil que une todos no mesmo destino. 

Essa lei não escrita do pertencimento à dimensão humana exige de todos uma atenção especial com aqueles que cuidaram de nós durante toda a vida. Sem se dar conta, as pessoas entram na existência precedidos de um investimento de afeto e trabalho amoroso que pavimenta seus passos no mundo. Fomos gerados, alimentados, educados, amados e protegidos sem outro merecimento que o fato de existir. É hora de se mostrar digno de tanto amor.

A forma como as pessoas mais velhas estão sendo consideradas – quase como um estorvo ou carga a ser sacrificada num momento de crise – é sinal de um esquecimento fundamental da dívida com eles. Há um cruel e perverso senso antinatural que parece nos obrigar a escolher entre os que merecem viver e os que podem ser descartados. Num mundo que se acostumou a discriminar pobres, estrangeiros, fracos e diferentes, consagra-se agora a maldição da idade como uma sentença de morte.

Quando se tenta defender os mais velhos, quase sempre se incorre na falácia de tentar mostrar que não são assim tão idosos ou improdutivos. Alega-se que a velhice hoje demora mais a chegar, que a terceira idade pode ser produtiva, que os anciãos ainda têm como contribuir com o mercado. Em outras palavras, que os velhos só valem se não forem velhos de verdade.

Esse movimento de negação já está inscrito no coração do nosso tempo. Como se a velhice não fosse em si uma fase da evolução do ser humano. A psicologia – ciência é sempre importante, como estamos vendo hoje – já consagrou a velhice como uma das etapas necessárias da evolução das pessoas. Para Erik Erikson, a velhice é a oitava fase do desenvolvimento que ele chama de epigenético ou psicossocial. Com seus ganhos e perdas, cada fase traz suas possibilidades e crises, como a infância, a adolescência e a maturidade. 

O último estágio de desenvolvimento, a velhice, entrega ao homem a completude de seu destino na existência: é o momento de alcançar a integridade de todas suas realizações da vida – no trabalho, no amor e na vida social. A cada uma das fases da vida das pessoas há um deslocamento entre o eixo que vai da experiência à memória. Quanto mais jovem, mais investimento na experiência direta, que vai compondo o patrimônio das memórias, que passa aos poucos a assumir a direção da existência das pessoas mais maduras. Só na velhice alcançamos plenamente o sentido da vida.

Se a psicologia nos dá cidadania na velhice enquanto sujeitos, é no campo das relações interpessoais que os idosos são ainda mais úteis e necessários. Sem a memória, a experiência de vida, a sabedoria que é fruto da reflexão e da humildade dos erros que nos constituem, não se pode pensar na evolução da sociedade. No entanto, marcados pela dimensão extremamente egoísta e competitiva da sociedade capitalista contemporânea, teimamos em ver o velho como um estorvo, alguém que “deixou de ser”.

Sociedades tradicionais e evoluídas espiritualmente estão aí para nos mostrar o contrário. Seja na cultura dos povos originários brasileiros, entre os griôs de algumas nações africanas ou em meio aos orientais, a sabedoria sempre brotou como uma conquista do tempo. Sem o testemunho suave e determinado dos griôs, por exemplo, o colonialismo teria imposto sua verdade feita de violência e destruição. A memória transmitida entre as gerações assumiu o papel do contraponto de verdades instituídas pelo colonizador. Foi pela voz dos velhos que muitos povos encontraram o caminho para sua afirmação.

No Brasil, nossos sábios podem não ter, muitas vezes, registrada sua presença em narrativas, mas estavam lá da mesma forma na garantia da dignidade da vida possível em país tão injusto. Cuidaram dos filhos, depois foram sustentação afetiva e material dos netos, garantiram a casa para onde era possível retornar nos momentos de dificuldade. Lutaram pela dignidade e perseveraram. 

Proveram o sustento com trabalho duro e nem sempre valorizado, fizeram empréstimos para permitir que os filhos seguissem seus caminhos mesmo à custa de privações pessoais, abrigaram os netos em seus braços quando mereciam todo descanso do mundo. Conservaram valores culturais, ensinaram com o exemplo, deixaram um mundo pronto onde se ancoram hoje todas as possibilidades da vida.  

O testemunho do afeto que as pessoas forem capazes de manifestar aos mais velhos é a história real que estará sendo contada para a posteridade. Observe as pessoas à sua volta com gratidão, ofereça ajuda a estranhos desassistidos, ligue para manifestar seu amor aos próximos, aproxime-se dos distantes. Não há vitória contra a doença do corpo sem que se promova a saúde da alma.   

Está na hora de cuidar de quem sempre cuidou de nós. De estar presente da forma que for possível nessa quadra de isolamento, com amor, provisão, alento e proteção. Não se trata de pagar dívida, mas de afirmar “o mais que humano em nós”. O que seremos amanhã está profundamente marcado na forma como tratamos os mais velhos. Eles não são apenas o espelho do que seremos um dia, mas a afirmação do que somos hoje. 

Edição: Joana Tavares