já no segundo dia de minha chegada a Três Pontas, cidade ao sul das Gerais em que existi menino, da qual saí há 35 anos e para a qual voltei agora, fui advertido por parentes, amigos e conhecidos: “Aqui, ocê fica ativo (no dialeto local, atento, esperto) com Rovílson, que ele num perdoa é ninguém”.
entre curioso e assustado, quis saber quem era Rovílson, até para, preventivamente, me apresentar, e, para dar legitimidade, retomando o sotaque: “e aí, Rovílson, firmão? faço gosto em lhe conhecê, caboco. sô neto de Filhinha Chaves, que foi casada mais Murad, morava na Praça da Fonte, lembra? fi de Isabel, uma libanesa lôra que era vizinha de Porenga, da farmácia, e que também entregava leite no latão, sabe qual?”.
porém, com aquela concisão muito mineira, e até para aumentar o suspense, todos só me responderam, quase em uníssono, “Ah, ocê vai sabê quem é, num demora” – e não demorou mesmo.
na quarta-feira de cinzas, precisei ir à cidade para pequenas compras domésticas e, muito importante, amolar meus canivetes, todos cegos há anos, porque sem serventia nas cidades grandes em que morei, mas de utilidade vital no interior, porque vai que a habitual cortesia mineira me oferece uma laranja, ou um tostão de um fumo de rolo do bom, e quédi o canivete pra cascá a fruta ou picá o fumo?
já na cidade, de saída do estabelecimento do joalheiro que, não me perguntem o porquê, é o melhor amolador de facas e canivetes da praça, este me disse: “Aqui, ocê que chegô agora, fica ativo com Rovílson, que ele num perdoa ninguém, e ispia só a cara dele ali, ó”, disse, apontando com o queixo o temido elemento, que finalmente descobri quem era: esse “cutinho” (que é como se chama cachorro aqui) aí da foto.
- caboco, me explica, por favor: por que diabo ele é tão temido? – quis saber.
- o peste já mordeu é tanta gente, que já foi até detido umas três vez – me revelou.
- sério? hahaha – duvidei, mas achei divertido um cutinho ser preso por autoridades.
- demais. assunta ali mais os taxista, que eles te conta tudo.
e fui assuntar, claro.
passado o estranhamento dos choferes de praça com o forasteiro e sua curiosidade, o menos desconfiado deu a ficha do elemento:
- Rovílson, nome que eu dei pra esse cutinho, só ataca em dia de confissão. Já carcô os dente nas canela de umas 8 pessoa, ômi e mulhé, sem dó. Três vez, pegô gente influente, acabaram prendenu o animalzinho num lugar público aí, pra vê se ele panha costume, mas num dianta: é tê confissão, ao menos um ele ataca.
- que trem mais curioso. sabe me dizer o por quê? – perguntei.
- desconfio que sei.
- pois diga, por fineza.
- Rovílson roda essa cidade é tudo, especialmente de noite, pra ganhá comida, então vê tudo, de todo mundo, e o senhor sabe, né?
- não, num sei, me diga.
- sabe os trem errado que usotro faz. povo diz que, até hoje, ele só ataca quem saiu da confissão, mas ele sabe que peca de novo.
panhei afeto em Rovílson.
o que o irrita não é o pecado, mas a hipocrisia.
o vigário perdoa, Rovílson, não.
grande sujeito.
Edição: Joana Tavares