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Visibilidade dos invisíveis

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"Os invisíveis eram essenciais, mas por serem invisíveis pouca gente sabia disso, ou preferia fingir que não sabia" - PMRJ
As funções que se dirigem à coletividade foram exatamente as que não puderam interromper seu labor

Podemos passar por um tempo sem vários tipos de confortos. Mas não vivemos um par de dias sem o trabalho dos garis. É possível esperar para consumir produtos especiais, mas sem a produção de alimentos no campo não existe vida possível um dia após o outro. Ficar em casa em isolamento é viável desde que tenhamos a oferta de energia e água, o que, na verdade, supõe o trabalho de profissionais capazes de manter os sistemas em operação.

Até bem pouco tempo atrás esses trabalhadores eram invisíveis, alguns deles quase literalmente – garis, agricultores familiares e técnicos que operam muitas vezes debaixo do chão. São apenas a ponta da maior parcela dos trabalhadores que mantêm o mundo girando, recebendo em troca pouco mais que a subsistência em forma de salários baixos e poucos direitos. E, ainda assim, sempre na mira para que – salários e direitos – sejam ainda mais reduzidos e precarizados. 

Além de ocupar um lugar de desprestígio nas relações econômicas, são considerados também trabalhadores de menor importância social. O que se traduzia no desprezo explícito de parte da sociedade dita civilizada. Todos devem se lembrar do âncora Boris Casoy tratando com deboche o depoimento de um gari numa reportagem de TV que recolhia mensagens para o ano-novo: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidade do alto de sua vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”, vomitou o jornalista como parte do lixo diário que entregava aos telespectadores.

Essas são apenas algumas das categorias, junto com os servidores públicos da saúde, balconistas de farmácias, caixas de supermercado, motoristas de ônibus, por exemplo, que parecem ter mudado de patamar na consideração das pessoas sobre o que de fato é ou não essencial. São profissionais que não tinham rosto, não mereciam respeito (sequer um bom dia ou outras palavrinhas mágicas) e eram confrontados no dia a dia como inimigos das relações soberanas de consumo.

Servidores da saúde pública eram tachados de inúteis e serviam, pela fragilidade de seu trabalho sempre carente de recursos e reconhecimento, como argumento para se investir em planos e seguros, que hoje mostram sua ineficácia em termos técnicos e éticos. O SUS, de eterno sinônimo de caos programado cuidadosamente pelos interesses da medicina privada, se tornou referência internacional para países que entregaram a saúde ao mercado. 

Hoje, esses profissionais são celebrados pelas mesmas emissoras de TV que ontem faziam deles objeto de escárnio. Alguns são saudados diariamente com palmas, enquanto entregam sua energia e vitalidade para salvar vidas. Alguns, que se arrebentam para dar continuidade à máquina social em meio a carências de toda ordem, são personagens de depoimentos que falam de orgulho profissional, mesmo em tarefas consideradas menos valorizadas. 

Demitir servidores públicos, em todas as áreas, sempre foi o programa do modelo econômico do Estado mínimo. Fragilizar as relações de trabalho criando uma jornada desumana (folgas que mudam de dia e alteração de horários a cada semana) e sujeita a intervalos não pagos de acordo com o interesse do negócio, era sinal de modernidade. Incentivar a terceirização e destruir os sindicatos era o estágio que daria mais competitividade à economia.

Os invisíveis eram essenciais, mas por serem invisíveis pouca gente sabia disso, ou preferia fingir que não sabia. Até que a crise gerada com a pandemia expôs não apenas o quadro deteriorado do emprego que agigantou a informalidade e escancarou a presença da miséria estrutural que mora ao lado, como revelou a sistemática destruição das garantias conquistadas historicamente pelos trabalhadores.  

Não é um acaso que as medidas de restrição aos salários e empregos tenham passado na frente da urgentíssima necessidade de garantir a sobrevivência das pessoas. A autorização do governo federal para o corte de salários e interrupção dos contratos foi muito mais veloz que a operacionalização das medidas relacionadas ao pagamento da renda emergencial à população que precisa desse recurso para sobreviver precariamente por escassos três meses. 

Quando se pensar em retomar as atividades econômicas e na volta dos trabalhadores aos diversos ramos da economia, isso só será possível porque alguns não pararam para permitir que a vida se mantivesse. Pode ser que esse momento traga uma reconfiguração do valor das profissões, pode ser que retome a inspiração concentradora e egoísta que sustenta o capitalismo e jogue de novo os trabalhadores na sombra e na urgência de retomar a luta. 

E não é difícil perceber que as funções que se dirigem à coletividade foram exatamente as que não tiveram a opção de interromper seu labor. A sociedade é mantida viva por uma rede invisível de dedicação ao outro, sobreposta por camadas de interesses que alimentam o mercado e servem à minoria. Uma inversão perversa fez da capa o miolo e propôs que os ganhos suntuosos da minoria alimentam por contágio a melhoria de vida de todos. O capitalismo carrega na essência um vírus moral.

A virada do egoísmo, da acumulação e do uso irresponsável dos recursos naturais, em direção à solidariedade, à justiça social e à busca de igualdade, que não deixe ninguém para trás, talvez seja o primeiro desafio de nosso tempo. E do futuro da humanidade, seja lá o que isso vai significar daqui pra frente.

Edição: Joana Tavares