Não teremos apenas trabalhadores em condições menos dignas, mas menos consumo e arrecadação
A recente aprovação da Carteira de Trabalho Verde e Amarela pela Câmara dos Deputados é um precedente perigoso para a democracia brasileira. Sem entrar no mérito, mais que evidente, da precarização e retirada de direitos do trabalhador, o trâmite em meio à pandemia, em sessão com votação remota, consagra mais uma vitória na destruição dos direitos trabalhistas no Brasil e a inauguração do isolamento democrático no Congresso Nacional.
Frente à situação de crise excepcional por que passa o país, é de se esperar que o Legislativo se converta no centro da racionalidade da democracia, como sua mais potente salvaguarda institucional. Como há uma prioridade inegociável em torno das ações voltadas para a defesa da vida, cabe às casas do povo, em todas as instâncias, voltar sua representatividade para tudo que não pode ser adiado e que exige, neste momento, um consenso necessário. Não é o caso da reforma trabalhista.
Na verdade, quando se pensa no trabalhador e nas formas de relação no campo econômico, a única unanimidade possível deveria se voltar para a preservação do emprego e da renda, e não para formas de fragilização dessas mesmas instâncias. É disso que o Congresso deveria tratar: garantir que as pessoas possam sobreviver com seu trabalho, respeitada a singularidade do momento e as ações emergenciais necessárias. Para isso, é preciso buscar alternativas viáveis, criativas e civilizadas. E, sobretudo, humanas e responsáveis.
Assumir a pauta governista neste momento, pensada em outra conjuntura econômica e social, é mais que uma capitulação ao projeto neoliberal que irmana nas sombras do presidente e parte de seus atuais opositores. Esses que hoje bradam pela razão, bom senso e ciência, o ajudaram a chegar ao poder em função exatamente dos objetivos postos no campo econômico, com a área trabalhista aí incluída. A Câmara, e possivelmente o Senado na sequência, estão mostrando sua natureza escorpiônica.
Ao trazer para votação um projeto que atenta contra o trabalhador e beneficia os empresários, mesmo que com o falso discurso da ampliação potencial de empregos, o que se estabelece é um rebaixamento do patamar de empregabilidade real, esgarçamento de garantias legais e de geração de renda. O que afasta ainda mais qualquer possibilidade de retomada. Não teremos apenas trabalhadores em condições menos dignas, o efeito cascata levará à contenção do consumo e arrecadação. Mas isso implica um médio prazo impensável para a ganância imediatista da banca.
Não é um acaso que a imprensa tradicional tenha tratado o assunto com simpatia. Ao noticiar a aprovação da Carteira de Trabalho Verde Amarela quase sempre explicam o projeto como uma forma de aumentar a oferta de trabalho, e não de ataque aos direitos. O que também deixa claro os limites da crítica da mídia a Bolsonaro: rejeitam o monstro irracional, mas se nutrem dos mesmos valores no campo econômico. Como se a monstruosidade fosse seletiva. Em termos morais, Guedes não é melhor que seu patrão.
Chama também atenção que a Câmara se apresse tanto em votar o projeto, mesmo que para isso tivesse que furar a fila de outras propostas mais urgentes, assumindo ainda o esvaziamento inevitável do debate na modalidade de deliberação à distância. A medida gerou centenas de emendas, certamente seria motivo de ampla discussão em plenário e exigiria um forte clima de negociação entre todos os atores envolvidos, sobretudo os trabalhadores. Despachada para o plenário virtual, com suas limitações em termos reais de manifestação de dissenso, se tornou jogo jogado sem a mediação do debate democrático.
Assim como na educação as iniciativas de ensino à distância se tornaram necessárias em tempo de afastamento social, a democracia à distância parece cumprir um protocolo temporário, quando na verdade limita o objetivo de se aprofundar no teor das medidas. Os partidários do ensino à distância logo vão buscar transformar a exceção em regra (como sempre desejaram e defenderam), propondo que se amplie a modalidade para os tempos de normalidade pedagógica. Terão assim uma educação mais controlada, menos crítica e mais lucrativa.
No Congresso e câmaras, o risco pode ser o mesmo, com certa amortização naturalizada do debate em favor de aprovações de medidas menos conflituosas e mais rápidas, decididas ao sabor dos donos da pauta de votações. Pode parecer que se avizinha um perigoso jogo político de democracia à distância. Pela prévia da votação a toque de caixa do novo capítulo da reforma trabalhista antipopular, com sua estratégia oportunista e canalha, o que se estabeleceu foi a distância da democracia.
Edição: Joana Tavares