Minas Gerais

BELO HORIZONTE

Fechamento de hospitais psiquiátricos e a luta antimanicomial: capítulo Galba Velloso

Hospital foi fechado e pacientes transferidos para dar lugar a tratamento contra o covid-19

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
bloco antimanicomial
o processo de fechamento dos leitos psiquiátricos e sua substituição por outros equipamentos começou na década de 1990 - Mídia NINJA

No mês de março de 2020 a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) anunciou o fechamento do Hospital Psiquiátrico Galba Velloso para transformá-lo em leitos para tratamento do novo coronavírus. A decisão tem causado muitas discussões na sociedade.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Sind-Saúde (Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais), que se posicionam contrários ao fechamento. Essas entidades questionam não só a forma como os pacientes estão sendo transferidos para o Instituto Raul Soares, mas se preocupam também com a possibilidade de o fechamento desses leitos gerar desassistência à população.

Essa mobilização pró-hospital gerou repercussão. Inclusive encontra-se em tramitação uma ação no Ministério Público pedindo a interrupção do fechamento e retomada de atendimentos na Instituição.

Porém, a posição de manutenção do Hospital Psiquiátrico não é um consenso entre profissionais, nem entre usuários dos serviços de saúde mental, familiares e controle social.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui! ::

No dia 2 de abril, foi veiculada em redes sociais a Carta da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (ASUSSAM) para a sociedade, em relação à utilização dos leitos do Hospital Psiquiátrico Galba Velloso para atenção à covid-19. Na carta, a Associação se mostra a favor do fechamento do Hospital Psiquiátrico e defende que ele deve ser usado na luta contra o coronavírus.

“Dizer por nós, usuários dos serviços de saúde mental, que a manutenção desses leitos visa proteger aos nossos interesses e nossas demandas de saúde é um absurdo sem tamanho, inclusive porque historicamente lutamos pelo fim de tais instituições”, diz um trecho da carta. Ela é assinada por entidades importantes como os Conselhos Municipal e Estadual de Saúde, Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) e Fórum Mineiro de Saúde Mental.

A Fhemig afirma que o fechamento do hospital não gerará desassistência em saúde mental, como informado pela carta da ASUSSAM. Além disso, o documento também informa que 95% dos atendimentos em saúde mental no estado de Minas Gerais são realizados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), substitutiva aos manicômios.

:: Leia também: Em meio à pandemia, hospital psiquiátrico é fechado em Belo Horizonte ::

Na verdade, o processo de fechamento dos leitos psiquiátricos e sua substituição pelos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial, tais como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residências Terapêuticos, Centros de Convivência, Unidades de Acolhimento Transitório e outros, é um processo histórico que teve início na década de 1990, tendo sido encabeçado pela luta antimanicomial.

Nessa época, existiam em Minas Gerais 36 hospitais psiquiátricos com algo em torno de 8 mil leitos. Belo Horizonte abrigava por volta de 2 mil desses leitos e sete desses hospitais.  Atualmente, o estado conta aproximadamente com 350 CAPS, dentre os quais, 42 funcionam durante 24 horas.

Esse processo de substituição gradativa dos hospitais psiquiátricos pelos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial é conhecido como Reforma Psiquiátrica. Tal processo é respaldado pela Lei Federal 10216/2001, ou Lei Paulo Delgado, e pela Lei Estadual 11802/1995, estando em conformidade com as diretrizes da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência do qual o Brasil é signatário.

Paulo Reis Braga é atual presidente da ASUSSAM-MG e, durante a década de 1980 até a abertura dos serviços substitutivos na década de 1990, sofreu 10 internações psiquiátricas. Ele realizava seu tratamento no Galba Velloso, o que avalia como “muito humilhante e doloroso”.

Ao contrário do que se acredita, que internações de cerca de 20 a 30 dias são uma mudança do processo de trabalho dos Hospitais Psiquiátricos, Paulo revela que o hospital não mudou em seu modo de operar. “Eu ficava entre 15 dias e dois meses internado. Quando eu voltava para casa, voltava humilhado, estigmatizado, havia muitos conflitos na família, pois não havia naquela época acompanhamento igual ao que temos hoje na rede substitutiva. Não é que não havia acompanhamento, eu voltava ao Galba para consultas, mas eram muito desqualificadas”, aponta.

Paulo ressalta que a grande diferença é que não há no hospital nenhuma ação que visa a construção de autonomia ou a reinserção social. “Toda vez que eu era internado tinha medo de não sair mais”, desabafa. Ao ser perguntado se houve algum ganho terapêutico em seu tempo enquanto era paciente do Galba, Paulo afirma que nunca teve nenhum ganho nas internações que sofreu.

Entretanto, revela que no início do Movimento de Reforma Psiquiátrica foi instituída a permanência-dia com oficinas nos hospitais e que não pode negar que teve influência positiva. Mesmo assim, “não tem comparação com a rede substitutiva, não éramos protagonistas do nosso fazer. Não tem como dizer que aquilo é um tratamento ideal”, declara. Depois da instituição da rede substitutiva, Paulo nunca mais foi internado. Hoje, além de ocupar a presidência da ASUSSAM-MG, trabalha no Centro de Convivência Pampulha e vive com a família.

É importante ressaltar a fala de Paulo e reconhecer que se cada dia menos gente mora nos Hospitais Psiquiátricos é por conta dos movimentos sociais e de leis e benefícios – como o “De Volta para Casa”, programa do Ministério da Saúde voltado à reintegração social de pessoas acometidas por transtornos mentais – que pressionam pela libertação desses pacientes.

Existe uma perversidade tenebrosa na lógica manicomial. Os argumentos que temos acompanhado na mídia refletem segmentos da sociedade que claramente rejeitam e discriminam os usuários. Um exemplo disso é o argumento de que o Galba e demais hospitais psiquiátricos podem ser utilizados para quarentenar usuários de saúde mental. Qual o problema em realizar a quarentena em casa? Para aqueles que não têm casa, só o morador de rua louco que é problemático? Por quê?

Fica evidente que mais uma vez veem os usuários não como grupo de risco susceptível a morrer, mas susceptível a matar. É claro que um ambiente hospitalar é muito propenso à contaminação, mas a preocupação não é com a morte dos usuários, mas com o fato deles serem vetores de doenças.

Enquanto a rede substitutiva quebra a cabeça pensando em como vai realmente acolher e dar assistência, diminuindo o risco de trabalhadores e usuários, o outro lado defende um discurso de encarceramento em massa. Se hoje usuários praticam isolamento social em casa, o hospital quer praticar a exclusão social. Querem se eximir de ter que fazer a educação em saúde, não acolher e orientar usuários e suas famílias, não querem mudar nem refletir sobre seu processo de trabalho, querem alienar os usuários, como se fossem incapazes de inteligência e solidariedade.

Essa é uma oportunidade para que aqueles que estão gritando aos quatro ventos que o hospital “só” interna por 20 a 30 dias, possam finalmente refletir se ficar preso em um lugar tem algum efeito terapêutico, se é que algum dia alguém acreditou nisso.

No contexto da rede substitutiva, uma questão que tem se colocado é sobre como seguir cuidando dos casos de saúde mental neste momento de pandemia. A clínica tão marcada pelo contato, aquele do afeto, do corpo, do abraço, precisa novamente ser reinventada. Como sustentar o cuidado dos casos que estejam em crise psiquiátrica e também com sintamos brandos de covid-19 e, portanto, transmitindo a doença? Haverá EPI (equipamentos de proteção individual) suficiente?

Essas são algumas das questões que têm passado pela cabeça de trabalhadores da rede de BH, às vezes tirando-lhes o sono, às vezes os transformando em trabalhadores vorazes em busca de soluções, às vezes os paralisando.

É curioso que o cenário de consolidação da RAPS e de todas essas complexas questões, seja marcado também por falas e posições profissionais que remetam a outro tempo, um tempo em que não havia pandemia. Prestar atenção nessas falas e posições e fechar os olhos pode nos transportar para o ano 2000, na cidade de Barbacena, durante o processo de fechamento de seu hospício; ou para o ano de 2008, aqui mesmo em Belo Horizonte, quando foi fechada a Clínica Nossa Senhora de Lourdes, ou mesmo para o ano de 2012, quando começou a ser fechada a Clínica Serra Verde, em Vespasiano.

Em todos esses fechamentos, muitas coisas se repetem: a precariedade dos pacientes no momento de sua alta, a falta de vínculos com qualquer território que não o hospitalar, a contrariedade de muitos dos funcionários desses hospitais pelo seu fechamento, a alegação de que os pacientes precisam do hospital para ter onde morar e o que comer ou que o caso é grave demais para ser tratado em liberdade.

A repetição desses discursos em diferentes tempos da nossa história pode soar como uma espécie de identidade que liga, como um fio, esses diferentes hospitais e clínicas, formando um aparato só.

Abramos os olhos, nos localizemos: estamos em 2020, em plena pandemia de Covid-19, lutando a cada momento para achatar a curva de crescimento e transmissão da doença, lutando contra a paralisação que as notícias de Milão, Guayaquil, Nova Iorque nos causam.

Precisamos, mais do que nunca, de solidariedade. Não é negando a possibilidade de abertura de leitos para pacientes com Covid-19 ou pedindo a continuidade de uma instituição já obsoleta que demonstramos nossa solidariedade, mas sim exigindo que os governos envidem todos os esforços possíveis para o combate à pandemia e que deem prosseguimento à política de desinstitucionalização com responsabilidade.

Que possamos atravessar essa onda pandêmica. Que o façamos de olhos abertos e com proteção. Que ao final de tudo, os nossos movimentos nos levem para um futuro de possibilidades solidárias, como essas que temos visto em muitas comunidades e aglomerados. Que ao olhar para trás, encontremos os relatos de pessoas confinadas, como proposta de tratamento, no seu lugar de direito: nos livros e nos museus, para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça.

Pela vitória da saúde coletiva, por um futuro sem exclusão social, por uma sociedade sem manicômios!

Laura Camey é usuária da rede de serviços substitutivos de BH há 3 anos e nunca recorreu às instituições manicomiais. Estudante de biologia e militante da luta antimanicomial, ela é atualmente vice-presidenta da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais – ASUSSAM, membra do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte e da Comissão Municipal de Reforma Psiquiátrica.

Luiza Morena é trabalhadora da rede de serviços substitutivos de BH desde 2012, tendo integrado a equipe de desinstitucionalização que fechou a Clínica Serra Verde e o Hospital Psiquiátrico Transitório. É graduada em terapia ocupacional e mestre em sociologia. Militante do movimento dos trabalhadores da rede de BH desde 2014, integra atualmente a Comissão Municipal de Reforma Psiquiátrica.

*Esse é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Elis Almeida