Muitas são as questões bioéticas postas para os países diante da pandemia mundial da covid-19. Dentre elas, talvez a mais expressiva diga respeito à gestão de recursos escassos e a consequente necessidade de estabelecimento de critérios para a eleição daqueles sujeitos que serão admitidos em leitos de UTI. O aumento, em ritmo acelerado, de pessoas contaminadas com demanda de internação em países como Itália, Espanha e Estados Unidos, chocou e sensibilizou, ao escancarar a adoção de parâmetros, evidenciando a existência de “escolhas sobre quem vive e quem morre”.
As diretrizes produzidas pela British Medical Association, associação britânica, por exemplo, orientam que pacientes idosos ou outros com maior probabilidade de morrer, assim como os que precisem de cuidados intensivos por mais tempo, devem ser secundarizados na avaliação de viabilidade para a assistência à saúde.
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Estes norteadores para admissão em UTI não surgiram com a covid-19 e têm amplos respaldos nas associações e instituições de saúde. No Brasil, uma resolução do Conselho Federal de Medicina normatiza tais critérios, desde 2016. Em seu artigo 6º, a normativa prevê cinco escalas de prioridade para avaliação das pessoas, considerando a probabilidade de recuperação e a ausência de limitações de suporte terapêutico.
Como prioridade 1 estão aquelas com “alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico”. Como prioridade 5 estão pessoas com “doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação”. Para estes casos é recomendada a admissão em unidades de cuidados paliativos.
Fora de um cenário pandêmico, o contexto de assistência intensivista e as demandas pela tomada de decisão já implicam em fator de estresse para os profissionais de saúde
Fora de um cenário pandêmico, o contexto de assistência intensivista e as demandas pela tomada de decisão já implicam em fator de estresse para os profissionais de saúde, tendendo ao agravamento, portanto, no panorama atual. Para Marika Warren, professora do Departamento de Bioética na Dalhousie University, o atual papel dos eticistas deve ser reduzir o número de escolhas difíceis com as quais os profissionais de saúde devem se deparar e, ainda, contribuir para solidificação de tais escolhas como eticamente defensáveis.
No Brasil, considerando insuficiente a resolução do CFM citada, e levando em consideração movimentos semelhantes de profissionais especializados em outros países, quatro professores de ética, de diferentes instituições de ensino superior, propuseram, em texto publicado no jornal Estado de S. Paulo, a manutenção do critério de maior chance de recuperação como o primeiro nível de prioridade, e acrescentaram os seguintes: 2º nível de prioridade: profissionais de saúde, por estes poderem retornar às contribuições para o tratamento de outras pessoas; 3º: ciclos de vida, sendo primeiro as pessoas com até 40 anos de idade, seguidas daquelas até 75 anos e, em terceiro, aquelas com mais de 75 anos de idade, considerando que, embora as vidas tenham igual valor moral, aquelas pessoas em estágio etário menor deverão ter a oportunidade de chegar à senioridade.
Por fim, esgotados estes critérios, sugerem a possibilidade de adoção de sorteio. Evidenciam que não se trata de parâmetros definitivos e que o objetivo principal deve ser salvar o maior número de vidas possível. Os autores convidam, sobretudo, para um debate, para o qual propomos algumas questões.
Em primeiro lugar, os critérios então apresentados não são neutros, nem autoevidentes. Neste sentido é necessário justificá-los à luz de valores e crenças compartilhados. Por que seria mais justo, por exemplo, salvar antes um profissional de saúde ou alguém mais jovem? No primeiro caso, a justificativa seria de que tais profissionais poderiam voltar a ajudar/salvar outros indivíduos. É inquestionável a importância dos profissionais de saúde, sobretudo em tempos de pandemia, mas será este um raciocínio moralmente adequado? Este argumento, no mínimo, adota uma visão instrumental do que seria o valor da vida destes indivíduos.
Sobre o critério de idade ou “ciclo de vida”, o argumento é o de que pessoas que viveram menos anos devem ter o direito de atingir os ciclos de vida posteriores. Sobre que crenças e quais valores poderíamos assentar tal argumento? Em que medida mais tempo de vida pode ser algo em si valorável e que possa ser estabelecido como um “direito” de alguns perante outros? Será “tempo de vida” um bem que estaríamos justificados a querer distribuir de forma equitativa? Embora os autores tenham mencionado que as vidas de todos os pacientes possuem o mesmo valor, tal critério, obviamente, faria com que os diversos interesses já não pudessem ser igualmente considerados.
O acesso à testagem e, principalmente, as mortes pelo novocoronavírus refletem as desigualdades de classe e raça que estruturam a sociedade brasileira
A atribuição de um valor moral formal ao “tempo ou ciclo de vida” desconsidera o conteúdo concreto das vidas vividas - o valor que cada indivíduo atribui a suas escolhas, realizações e projetos de vida. O direito a viver mais anos, de alguns, não pode se sobrepor ao direito de continuar vivendo, de outros. A aposta no critério do tempo/ciclo de vida pode ter consequências bastante questionáveis, quando pensamos sobre outros temas caros à bioética.
Finalmente, repudiamos a ideia de que o sorteio seja um critério acertado, ainda que como última opção. O sorteio é uma forma de nos eximir da responsabilidade de estabelecermos parâmetros razoáveis para a decisão. Qualquer escolha pode ser falha, mas não há como deixar de realizá-la e a melhor forma de minimizarmos a chance de erro é considerando todos os aspectos e vozes que estiverem ao nosso alcance.
Médicos não são oniscientes e onipotentes, são seres humanos comuns, muitos deles dando o melhor de si para tornar vidas possíveis. Se mantiverem esta compreensão de seus limites, talvez possam tirar dos ombros o peso de uma decisão solitária e ampliar as vozes em debate. Para a triagem singular dos casos, parece adequada a recomendação da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) de que as equipes de avaliação para os cuidados intensivos devem ser compostas de, pelo menos, três profissionais, sendo dois médicos(as) e um outro profissional de saúde.
É inegável que eticistas devem se engajar na identificação de critérios e razões que minimizem o estresse e a carga psíquica dos profissionais de saúde, que no seu dia-a-dia são confrontados com a necessidade de tomar tais decisões. Entretanto, antes de eticistas apresentarem qualquer lista de critérios, é preciso mencionar quais vozes forem consideradas, de forma a garantir uma ampla frente de legitimação. Do modo como é apresentado, o debate carece ainda de um aprofundamento quanto a questões bioéticas relativas à promoção de justiça social.
Temos acompanhado como o contágio, o acesso à testagem e, principalmente, as mortes pelo novocoronavírus refletem as desigualdades de classe e raça que estruturam a sociedade brasileira e outras, como o exemplo norte-americano torna evidente. As estratégias sanitárias não estão desvinculadas de um contexto econômico, político e social mais amplo. Do mesmo modo em que as prerrogativas de promoção da saúde e prevenção da doença não devem ser descartadas como nosso principal horizonte.
A população brasileira tem sido duramente confrontada com um falso e perigoso dilema, em que se polariza economia à saúde pública, ou, em outros termos, o direito ao emprego ao direito à vida. Tal falácia, somada à falta de governabilidade e gestão estratégica e centralizada, acentua a insegurança e os riscos de todo o povo brasileiro.
Trata-se, portanto, menos da identificação de razões para deixar morrer, do que de uma reflexão sobre o papel do Estado na viabilização de vidas que se encontram em condições absolutamente precárias, muito abaixo de qualquer garantia do mínimo existencial razoável. É urgente que nenhuma pandemia venha endossar padrões eugenistas e uma necropolítica racista, homofóbica, sexista e elitista. Do mesmo modo, é urgente que a desigualdade social e a precariedade das condições de vida impostas à grande maioria dos cidadãos brasileiros sejam enfrentadas.
Receamos que os estabelecimentos de critérios por eticistas, ou outros grupos de profissionais isolados, possa subsidiar a assimilação de certas mortes, como por exemplo, a morte de idosos e de indivíduos pertencentes à população de risco, como consequência inexorável da pandemia. Não podemos cometer o erro de naturalizar o que em última instância apenas reflete escolhas sócio-político-econômicas, realizadas pela sociedade e por seus representantes governamentais há séculos. Sugerimos, assim, um redimensionamento crítico, e não pontual, das estratégias para enfrentamento da pandemia.
Ressoamos o convite ao debate, não apenas a eticistas, mas a toda sociedade. Sugerimos fortemente a criação imediata de um comitê bioético nacional, composto interdisciplinarmente, e que possa assessorar as decisões estratégicas neste grave momento em que não podemos permitir que a escolha por quem vive e quem morre incida, mais uma vez, sobre os segmentos historicamente invisibilizados ou mais vulnerabilizados da nossa sociedade.
Maria Clara Dias é professora titular de Ética (UFRJ) e do Programa de Pós Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ, FIOCRUZ, UERG, UFF). Pesquisadora do CNPq e FAPERJ. Letícia Gonçalves é Doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva.
Edição: Joana Tavares