As ações contra a disseminação do coronavírus, sobretudo o isolamento e distanciamento social, parecem estar fazendo efeitos e achatando a curva de contaminação em Minas Gerais e em Belo Horizonte. Conforme dados do boletim epidemiológico divulgado nesta quarta (13), no estado são 3.733 casos confirmados e 135 óbitos confirmados. Em Belo Horizonte, são 1020 confirmações e 28 óbitos, número menor que de outras capitais da região Sudeste.
Apesar de pesquisadores, médicos e epidemiologistas defenderem a continuidade do isolamento social, o governador Romeu Zema (Novo) coloca em prática o programa Minas Consciente, que orienta prefeitos a flexibilizar a abertura do comércio. Ao contrário dessa iniciativa, o prefeito da capital mineira Alexandre Kalil (PSD) não descarta o bloqueio total e afirma que está estudando a abertura a partir do dia 25 de maio.
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O Brasil de Fato MG conversou sobre esses assuntos com o professor do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Unaí Tupinambás. Membro dos comitês de enfrentamento à covid-19 da Prefeitura de Belo Horizonte e da UFMG, Unaí fala sobre a curva de contaminação, a falta de testes, os impactos do coronavírus nas desigualdades sociais e o fim do isolamento social. Confira:
Brasil de Fato MG – Qual o balanço da curva de contaminação em Minas Gerais e em Belo Horizonte?
Unaí Tupinambás – Os dados de Belo Horizonte e Minas Gerais, em certa medida, refletem as ações que foram implementadas, principalmente na capital, onde a prefeitura decretou o isolamento social a partir do dia 17 de março, já são quase dois meses. Esse isolamento, mesmo que parcialmente, em torno de 60 a 65% no pico de adesão, se mostrou eficaz na redução dos nossos números de casos confirmados, de mortalidade, em comparação com outras capitais da Região Sudeste.
Com certeza, o que acontece em Belo Horizonte é um termômetro para Minas Gerais. Na região Norte do estado, Vale do Rio Doce, Mucuri, Jequitinhonha, São Francisco, um pouco da Zona da mata, e nas regiões fronteiriças com São Paulo e Rio de Janeiro a situação é um pouco diferente. No entanto, a gente reforça que a conduta de isolamento social tem se mostrado eficaz, pelo menos, na redução de casos graves e da mortalidade.
Tanto no estado quanto em BH, a falta de testes para a população tem sido apontada como um dos principais problemas. Qual a sua avaliação?
Essa questão da testagem é o nosso “tendão de Aquiles” no enfrentamento da pandemia. A gente sabe que no mundo existe uma questão estrutural de fornecimento de testes, de kits de exames, mas talvez aqui em Minas a situação seja um pouco pior. A gente precisa, realmente, equacionar, tentar aumentar a oferta de testes, descentralizar a realização desses testes, que está centralizada na Funed [Fundação Ezequiel Dias].
Aqui em BH, a UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] tem três ou quatro laboratórios que estão disponíveis para ampliar a testagem. Todos os países usam a estratégia, não só do isolamento social, mas de uma testagem em massa da população, inclusive buscando os contatos das pessoas positivas. A gente, sem teste em larga escala, está caminhando um pouco no escuro. E a testagem mais ampliada pode inclusive nos facilitar saber o momento exato de abertura e calibração do isolamento social, onde e quando promover essa abertura.
Em relação ao sistema de saúde, como está a previsão de colapso e quais as medidas que deveriam ser tomadas para evitar?
Em relação aos leitos de CTI e enfermaria em Belo Horizonte ainda estamos em uma situação bem favorável, considerando hoje, dia 13. Em torno de 40% dos leitos de CTI especificamente para covid-19 estão ocupados e enfermaria só pra covid-19 um pouco menos. Então temos percebido que o isolamento social está refletindo nas ocupações dos nossos leitos.
Mas esse equilíbrio é muito frágil. Se a gente relaxar no isolamento social, como tem acontecido nas últimas semanas, essa falsa segurança que estamos tendo se perde em dias. Se nossa taxa de transmissão estiver aumentando, silenciosamente, sem a gente detectar, o esgotamento do serviço de saúde pode se dar em semanas. Mais uma vez, a gente tem que manter o isolamento e mais do que isso, ampliar a testagem para covid-19.
O Observatório das Desigualdades, ligado à Fundação João Pinheiro, lançou um material nesta semana que aponta algumas taxas nacionais de mortalidade e hospitalização de pessoas negras e brancas. Em resumo, a população branca tem mais acesso a leitos que a população negra, enquanto o número de óbitos é maior entre a população negra. Os óbitos refletem algumas desigualdades sociais?
É claro que isso ia acontecer. A epidemia ia atingir a população mais vulnerável, mais pobre, mais periférica, de forma desigual, como todas as doenças, infelizmente. Não é só no Brasil, mas na Europa, nos Estados Unidos principalmente, a mortalidade é muito maior entre negros, hispânicos e outras etnias.
O branco americano morre muito menos que o negro, latino ou asiático, por exemplo. Já existem dados comprovando isso. E aqui no Brasil não vai ser diferente. Nossa sociedade é injusta há muito tempo, já tem uma inequidade assustadora há muito tempo. Nossa distribuição de renda é vergonhosa e infelizmente essa pandemia só vai gerar mais pobreza e concentração de renda.
Pelo menos aqui em Belo Horizonte a doença não chegou de forma muito intensa nas favelas, vilas e aglomerados. Se caso isso acontecer, vai ser realmente uma situação muito catastrófica. Isso é uma coisa que nos preocupa muito, a vulnerabilidade da população mais carente de Belo Horizonte. A prefeitura tem tentado mitigar isso, oferecendo kits de higiene, 600 mil cestas básicas e 2,5 milhões de máscaras foram distribuídos.
E a gente tem que cobrar imediatamente a liberação mais ágil da renda mínima, que realmente é mínima porque ninguém consegue viver com R$ 600, mas esse valor pode mitigar um pouco. Felizmente estão tendo ações das universidades, a UFMG por exemplo, junto com a população das favelas, está distribuindo orientações de como usar máscaras, como proceder no distanciamento social, sobre lavação de mãos, enfim. São algumas ações paralelas as ações do Estado que podem ajudar.
Mas, realmente, é uma situação que nos preocupa muito. E, como disse, a pandemia é uma catástrofe de proporções inimagináveis, que vai só agravar a inequidade e a injustiça social.
Como o comitê de monitoramento da pandemia da Prefeitura de Belo Horizonte tem trabalhado com o alerta da chegada pandemia nos aglomerados, vilas e favelas? Com um possível fechamento total, que não foi descartado por Kalil, como ficaria essa população?
Eu sempre tenho repetido que o isolamento é um privilégio de classe. A gente sabe que a população de periferia já é terceirizada, tem trabalho precário, que tem que sair de casa todo dia pra colocar alimento na mesa. Isso é uma coisa que nos preocupa demais. Lógico que o isolamento social que foi proposto permitiu um deslocamento, mesmo que precário, dessa população, tentando mitigar esse efeito colateral.
O isolamento também, que vem até então cumprindo com o objetivo de manter a transmissibilidade um pouco abaixo, se for desrespeitado, como a gente tem visto nas últimas semanas, pode elevar a transmissibilidade e afetar em cheio essa população.
E talvez se o nosso índice de infecção aumentar, como a gente tem medo de ocorrer, o prefeito já falou que vai ter que propor o fechamento total, que é muito mais traumático para toda a sociedade, não só para a população mais carente, mas para a economia também. É melhor fazer o isolamento do jeito que está sendo proposto do que o fechamento total.
Mesmo com a diminuição da adesão ao isolamento social, o prefeito Alexandre Kalil afirma que o comércio pode voltar a funcionar no próximo dia 25. E, ainda o governador Romeu Zema lançou o Minas Consciente. É possível voltar a uma “nova normalidade” neste mês sem sacrificar milhares de vidas?
Desde o primeiro dia que nós propusemos o isolamento social, os comitês da UFMG e da Prefeitura de Belo Horizonte começaram a estudar qual seria a melhor forma de sair e quando sair. Agora não é o melhor momento para sair do isolamento.
A gente está à frente, tomamos a atitude na hora certa, nós aprendemos com os acertos do governo da Província de Hubei, na China, e aprendemos com os erros dos prefeitos do norte da Itália. Fizemos o isolamento na hora certa, temos um número de casos muito baixos em relação à São Paulo e ao Rio de Janeiro, para comparar duas capitais semelhantes à Belo Horizonte, do Sudeste.
E agora a gente vê que não é hora de sair. A taxa de transmissão, que é o R0, está subindo lentamente. O pico pode aparecer, mas estamos esperando que não tenhamos o pico da doença, mas o número de casos mais diluídos ao longo do tempo. E quando a gente perceber que isso está sob controle, daqui umas 4 ou 5 semanas, a gente pode realmente pensar em sair.
Quando a prefeitura fala em dia 25 de maio para desmobilização social, o comitê coloca para isso alguns indicadores, que são número de casos de covid-19, número de leitos ocupados [UTI e enfermaria], e mortalidade. Caso esses três indicadores estejam tranquilos, a gente pode começar a planejar a saída a partir do dia 25. A gente espera poder sair. Mas repetindo, caso a gente não tenha esses indicadores apontando uma tranquilidade na pandemia, essa data será abortada e adiaremos a abertura.
Nosso receio é que no interior de Minas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, algumas cidades que não estão respeitando o isolamento podem aumentar a taxa de transmissão local e que isso reflita em Belo Horizonte. Vamos aguardar esses dados, sinalizados dia a dia, caso eles sejam adequados e seguros, a gente vai sair dia 25, caso não, essa data será cancelada, adiada sem sabermos para quando.
Qual a sua avaliação dos governos de Jair Bolsonaro e de Romeu Zema e como eles têm se colocado frente aos argumentos a favor da manutenção do isolamento social listados no documento lançado pelo comitê da UFMG?
Infelizmente estamos vivendo dois processos muito graves, que é o sanitário e o político. A gente percebe que historicamente, principalmente no Ministério da Saúde, havia uma ambiência política em que as pessoas tinham espaço para debate e para o consenso. Todas as medidas propostas, desde o início da criação do SUS, eram discutidas entre seus pares, entre os secretários estaduais e municipais, bem com as outras atividades em volta, outros entes políticos que facilitariam a implementação daquelas políticas sanitárias. O que a gente vê é essa falta de ambiência.
Além de não ter espaço de consenso, existe um espaço de dissenso, o nosso presidente joga contra. E isso tem todo um impacto, porque a população fica completamente desnorteada, uma pessoa fala uma coisa, o presidente desmente ou não autoriza a fala do técnico, da ciência. Isso realmente propicia uma fraqueza no enfretamento à pandemia.
O meu receio, mais uma vez, é que o Brasil seja o centro da pandemia do mundo, com milhares e milhares de mortes desnecessárias. E seremos marcados com esse enfrentamento totalmente inadequado. Nosso presidente incentivando a abertura da cidade, falando dessa questão da economia... Vai ser uma tragédia.
Eu tenho falado que desde a invasão do Brasil, em 1500, pelos portugueses que dizimaram a população indígena com a gripe e outras doenças, talvez esta pandemia seja a segunda maior catástrofe sanitária do país. E é esse o cenário que se avizinha. A gente tem, a gente mesmo, a sociedade civil, que tentar enfrentar esta epidemia, seguindo as orientações das autoridades sanitárias, como o isolamento, o distanciamento social, o uso de máscara, a lavação de mãos.
E cobrar, claro, do Estado brasileiro a agilidade na renda mínima e, quem sabe, este modelo de sistema capitalista não esteja no seu fim? Se a gente mantiver este mesmo modelo, que vem sendo até então, com certeza, teremos outra epidemia, outra pandemia em breve.
Edição: Elis Almeida