Minas Gerais

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Contrariando OMS, Ipatinga (MG) flexibiliza isolamento e casos mais que duplicam

Com base em 0,053% de amostragem, comércio da cidade foi liberado para a reabertura

Brasil de Fato | Ipatinga (MG) |
feira pandemia ipatinga
Feiras e espaços que permitem aglomeração estão liberados em Ipatinga (MG) - Nilmar Lage

O boletim especial apresentado pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais traz um dado preocupante e que dá força para a tese da subnotificação, pois trata-se de óbitos por SRAG, sem identificação. De acordo com o documento, além do aumento neste ano em 512,8% do número de notificação de Síndrome Respiratória Aguda Grave, em comparação com 2019, a macrorregião Leste do estado, onde está Ipatinga, possui 46 óbitos de SRAG. E em todos os boletins epidemiológicos da cidade, apontam para um número de zero mortes por covid-19.

“Olá, como vai você? Tudo bem?” Foi com o tradicional jargão usado em suas transmissões online que o prefeito de Ipatinga, Nardyello Rocha (Cidadania), anunciou no último 28 de abril que iria flexibilizar o comércio para bares e academias, com o argumento de que a decisão foi tomada com base “em números, gráficos e da realidade do nosso município”.

O Boletim Epidemiológico da cidade apresentava, no dia 27 de abril quando o site da prefeitura anunciou a flexibilização1.418 casos suspeitos e 16 confirmados para covid-19.

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Ainda de acordo com o vídeo publicado na conta do instagram da Prefeitura Municipal de Ipatinga (PMI), o município teria adquirido testes rápidos e realizado 140 coletas na cidade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que Ipatinga possui uma estimativa de 263.410 habitantes, ou seja, com base em 0,053% de amostragem foi deliberado que a cidade estaria apta para reabertura.

Após o anúncio da flexibilização, parte do comitê gestor que discutia com o prefeito estratégias de combate à pandemia emitiu uma nota de repúdio, justificando que “não foram apresentados ao Comitê Gestor da Crise COVID-19, estudos ou dados técnicos suficientes” que justificassem a decisão. Assinam a nota de repúdio o Ministério Público de Minas Gerais, a Defensoria Pública de Minas Gerais, as polícias Civil e Militar de Minas Gerais e o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais.

Em 8 de maio, um pedido do Ministério Público pela revogação da Medida Provisória que permitia a abertura do comércio em Ipatinga foi aceito pela Justiça. Contudo, no mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto no qual incluiu academias, salão de beleza e barbearia como serviços essenciais e aptos a retomarem suas atividades.

Com base no decreto presidencial, Nardyello Rocha sustentou a abertura do comércio da cidade. Os números do Boletim Epidemiológico nesse dia apontavam para 1603 casos suspeitos e 24 confirmados.


O médico infectologista Márcio Castro critica a reabertura: "Nós não temos os dados" / Nilmar Lage

Para o médico infectologista Márcio Castro, que atua em Ipatinga há 20 anos, a flexibilização é um erro, principalmente pelo baixo índice de testes no Brasil e em Minas Gerais, que é o segundo estado que menos testa no país, segundo levantamento do G1.

“Quais dados estão baseando essa abertura? Nós não temos os dados. Qual a parcela da população que já foi infectada? Há uma equalização de potencial de quantos leitos se precisa? Nós não sabemos nada disso”, questiona o médico.

Márcio Castro chama atenção para dados comparativos que o governo do estado de Minas Gerais apresentou em um boletim especial lançado dia 11 de maio. De acordo com o relatório, até o dia 8 de maio de 2020, Minas Gerais notificou 8.089 casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Comparando com o mesmo período em 2019, quando 1320 casos foram notificados, houve aumento 512,8%.

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Oficialmente Minas possuía, em 18 de maio, 4714 casos confirmados da covid-19. “Os dados da Secretária Estadual de Saúde mostram que as internações por SRAG cresceram muito. Ou seja, nós estamos tendo internações por covid que não estão sendo notificadas,” relata o médico. A Síndrome Respiratória Aguda Grave é uma pneumonia atípica.

De acordo com o Ministério da Saúde, uma “Síndrome Gripal que apresente: dispneia/desconforto respiratório OU pressão persistente no tórax OU saturação de O2 menor que 95% em ar ambiente OU coloração azulada dos lábios ou rosto. EM CRIANÇAS: além dos itens anteriores, observar os batimentos de asa de nariz, cianose, tiragem intercostal, desidratação e inapetência.

Colapso no horizonte

Ipatinga está 220Km distante de Belo Horizonte, é um polo industrial do Leste de Minas Gerais e a principal cidade da Região Metropolitana do Vale do Aço (RMVA) e, como cidade polo, há considerável número de circulação de pessoas. O contexto explicita a necessidade de atenção, pois de acordo com a assessoria da PMI, há no município 72 leitos disponibilizados para casos de covid-19. Destes, 33 estão na rede municipal e 39 na rede particular.

O boletim epidemiológico de Ipatinga mostra um número crescente e preocupante de contaminação pelo novocoronavírus, no dia 21 de maio, são 1703 casos suspeitos e 68 confirmados. O número de casos confirmados mais do que dobrou 20 dias após a flexibilização e o colapso do sistema de saúde está no horizonte.


Fonte: Site da Prefeitura Municipal de Ipatinga (MG) / Reprodução

No entanto, as pessoas continuam indo aos salões de beleza, academias, bares, igrejas e se aglomerando em feiras livres, como foi visto no sábado (16) - foto acima. Existem campanhas no Brasil por políticas públicas solidárias que garantam, durante a pandemia, o acesso universal e igualitário aos serviços hospitalares através do SUS, mas ainda não há garantias de que haverá uma unificação dos sistemas públicos e privados para atender todos que precisarem de um leito.

Doença sem face e negacionismo

A experiência mundial no combate à pandemia, os acertos e principalmente os erros, legitimados por estudos e pesquisas de institutos como o londrino Imperial College of Londom e as universidades brasileiras como a UFMG, apontam para a urgência do isolamento.

Perguntado sobre o que mais seria preciso para que as pessoas compreendessem a gravidade e valorizassem o isolamento como ação mais eficaz até o momento, o infectologista Márcio Castro foi categórico: “A primeira questão é que é uma doença grave, que a gente não vê o que está acontecendo. Ela tem essa coisa da invisibilidade. A AIDS nos anos 80 tinha uma cara. Você não tem a cara da Covid, os números são impessoais. Expressam muito pouco. É diferente de uma catástrofe. Como uma chuva em que você vê um corpo embaixo de um barranco. Na Covid você não vê isso”, argumenta.

Existem vários lugares no mundo onde os corpos estão sendo deixados nas ruas, ou em casa, mas essa realidade ainda não atingiu expressivamente o Brasil. Só tivemos contato com esse caos através de imagens que circulam.  “A morte assusta pela proximidade. A morte lá na TV e um caixão sem rosto, talvez só as pessoas dessas cidades se assustem mais”, reforçou o médico.

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O casal Fábio e Elaine Barbosa, ipatinguenses que vivem em Turim, na Itália, há quase 20 anos, mostram-se preocupados com seus familiares que moram em Ipatinga. Principalmente pelo fato de não creditarem à doença a gravidade que ela possui, repetindo inclusive o erro que eles cometeram quando na chegada da doença na Itália.

Em tom de desabafo sobre o período de tensão vividos, Elaine diz que “no início não acreditávamos muito, até que aconteceu com um amigo nosso. Ele se contaminou, ficou muito grave e internado por mais de 40 dias. Na família dessa pessoa foram outros sete contaminados e um óbito. Antes achávamos que era manipulação, uma mentira para nos colocar dentro de casa. Quando tocou alguém mais perto, foi desesperador.”


Elaine Barbosa e Fábio são de Ipatinga e vivem na Itália há 20 anos / Arquivo Pessoal

Márcio Castro chama atenção também para o negacionismo da ciência: “O outro lado é a confusão dessa informação. Você tem um número e você tem uma pessoa que gera descrédito”. No caso, Márcio falava de atitudes generalizadas do governo federal em desmerecer dados científicos e cultuar o “achismo”. É o caso por exemplo de Ipatinga, expresso pela postura do Executivo em não apresentar dados robustos ou aplicar testes suficientes.

A OMS listou seis critérios que devem ser cumpridos antes de flexibilizar a circulação de pessoas nas cidades: Transmissão do vírus controlada; sistemas de saúde com capacidade de detectar, testar, isolar e tratar todas as pessoas com covid-19 e os seus contatos mais próximos; controle de surtos em locais especiais, como instalações hospitalares; medidas preventivas de controle em ambientes de trabalho, escolas e outros lugares aonde as pessoas precisam ir;  manejo adequado de possíveis novos casos importados; comunidade informada e engajada com as medidas de higiene e as novas normas.

A partir destes critérios, o estudo “Porque ainda não é o momento de flexibilizar o isolamento social em Minas Gerias”, apresentou nove razões que justificam a não flexibilização. Entre eles, os principais aspectos seriam o fato de a transmissão do vírus no Brasil ainda não estar controlada; o sistema de saúde ainda não detecta, como deveria, as pessoas infectadas em Minas Gerais (“subnotificação”); não há um planejamento para a realização de testes em amostragem representativa da população; falta de sistematização e transparência das informações relativas aos serviços de saúde (profissionais, disponibilidade de leitos, insumos de EPI, respiradores).

Em defesa da flexibilização

Pressionando os entes municipais, estaduais e federais, os empresários agem de acordo com a força que possuem para conseguirem a flexibilização do comércio. Em Ipatinga, o Sindicato do Comércio do Vale do Aço tem buscado respaldar o discurso da classe que pressiona pela permanência dos empreendimentos de portas abertas e a circulação de pessoas na cidade. O órgão foi atuante para derrubar a ação do Ministério Público contrária ao decreto municipal nº 9.312 que garantia o funcionamento do comércio.

Em uma nota à imprensa regional, a assessoria do Sindcomércio disse que “reiteramos que não cabe ao Estado determinar pela abertura ou fechamento das empresas. Essa decisão é do município, por meio da Prefeitura, que baseada nas informações que tem já permitiu a retomada consciente do comércio com os devidos meios de proteção, como o uso de álcool-gel e máscaras”.  Importante ressaltar que a PMI alegou que a testagem em 0,053% da população foi suficiente para respaldar a reabertura do comércio.

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O empresário Marcelino Novaes faz coro àqueles que defendem que o comércio precisa permanecer aberto, mas com os devidos cuidados de higiene estabelecidos pelo decreto 9.312. Vale ressaltar, que no Brasil 13,7 milhões de pessoas estão em situação de extrema pobreza e têm dificuldade de acesso básico a higiene pessoal. Essas pessoas circulam pelas cidades, são trabalhadoras e também consumidoras, em escala menor, de produtos. Ipatinga, mesmo com seu histórico de prosperidade, possui uma população desprovida de recursos básicos e que são invisibilizados na conjuntura, como já mostrou o Brasil de Fato aqui e aqui.

Mas o empresário ressalta que caso o prefeito Nardyello Rocha não optasse pela reabertura, “poderia causar um caos social realmente maior, com empresas fechando, provocando desemprego”.


Empresário Marcelino Novaes apoia a reabertura do comércio em Ipatinga (MG) / Nilmar Lage

A principal recomendação mundial para evitar a continuidade da pandemia, inclusive por não haver uma vacina até o momento, é o isolamento social. O que garante por exemplo que o colapso em sistema de saúde sucateado como tem acontecido com o Brasil, principalmente a partir da Emenda Constitucional 95, a PEC do Teto dos Gastos, seja adiado.

De acordo com o médico Márcio Castro, “quanto mais eficiente nós formos, mais vai parecer que não precisou (do isolamento). E cada vez mais essa lotação do sistema vai sendo empurrada para a frente. O fato de não termos entrado em colapso é porque fizemos o isolamento cedo, fizemos o básico bem feito”.

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Marcelino Novaes diz que o grupo de empresários tem se pautado pelo número de leitos disponíveis em Ipatinga e que mesmo com o aumento dos casos, as internações mantêm-se estáveis. “Quanto mais testar, mais vai aparecer. A gente tem que testar muito, mas tem que prestar atenção dentro do hospital. As vezes o número cresce, mas não cresce a ponto de atingir o hospital. As internações mantêm um padrão baixo. Agora, se começar a crescer, temos que voltar a fechar porque não pode morrer todo mundo por causa de cinco ou seis empresários”, defende.

De acordo com a assessoria da Prefeitura Municipal de Ipatinga, a cidade teria disponível 39 leitos na rede particular, sendo 14 para UTI, deste total, oito estariam ocupados e 25 leitos clínicos, dos quais 13 estariam preenchidos. Na rede municipal, são 33 leitos, 17 para UTI com três ocupações e 16 leitos de enfermaria, também com três ocupações. Em Ipatinga, e também na Região Metropolitana do Vale do Aço, não há hospital estadual.

Fechados pela vida

Na contramão desses empreendedores, um grupo de empresários lançou um manifesto em Curitiba e começa a alcançar outras cidades no Brasil que é o movimento “Fechados pela Vida”. Em uma postagem no perfil dos empresários curitibanos, eles relatam uma ação perdida e que visava o recuo na decisão do executivo local pela flexibilização:

“Enviamos um ofício para o Ministério Público cobrando algumas medidas para ajudar no cumprimento de medidas de saúde bem como pedir que a Prefeitura de Curitiba retorne da decisão de flexibilizar o comércio a partir do dia 17 de março...Infelizmente não conseguimos que a Prefeitura de Curitiba determine o fechamento e ajude pequenos negócios a sobreviver, mas conseguimos garantir que haja fiscalização”.

É sabido que a doença chegou ao Brasil através de pessoas abastadas, que estavam em viagens internacionais. Contudo, a curva da contaminação para os mais vulneráveis ultrapassou a classe média/alta e o infectologista Márcio Castro rebate os argumentos dos empresários que pedem a volta dos trabalhadores aos seus postos: “Talvez as pessoas estejam adoecendo e a gente não sabe, pois são invisíveis. O comércio falando em abrir, na hora que o empresário se isola em casa e coloca o funcionário para trabalhar. Isso é de uma maldade imensa. Matar os pobres para manter os ganhos da empresa.”

Sem notificação

O boletim especial apresentado pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais traz um dado preocupante e que dá força para a tese da subnotificação, pois trata-se de óbitos por SRAG, sem identificação. De acordo com o documento, além do aumento neste ano em 512,8% do número de notificação de Síndrome Respiratória Aguda Grave, em comparação com 2019, a macrorregião Leste do estado, onde está Ipatinga, possui 46 óbitos de SRAG. E todos os boletins epidemiológicos da cidade apontam para um número de zero mortes por covid-19.

Apenas em um dia (19) o país atingiu o infeliz número de 1.179 vidas perdidas oficialmente para a covid-19, e pensando na pergunta do prefeito jogada ao público no início de suas lives, cientificamente é possível responder que não, Nardyello, não está tudo bem.

Resposta

A reportagem procurou a assessoria da PMI na sexta feira, 15 de maio, conseguiu algumas respostas, mas a solicitação de entrevistar a secretária de saúde­­ não foi atendida. De acordo com uma ligação para o secretário de comunicação, ela não poderia responder porque “essa pandemia está nos consumindo demais”.

Edição: Joana Tavares