O ano é 2220. Decidiram fazer uma visita a Seu Oamó. O nome Oamó era único, assim como todos os nomes escolhidos nas últimas décadas o eram, representando seres também únicos – a diversidade se tornou valor primordial. Foram no dia de sua Emancipação Humana, data comemorativa que substituíra o antigo “aniversário”. Agora, as pessoas comemoram não o dia aleatório que se tornam, naturalmente, um mero corpo no mundo, mas o dia em que fizeram sua primeira contribuição ao desenvolvimento humano: 105 anos, 20 a menos do que a expectativa de vida mundial atual e 5 a mais do que a fundação do Território Livre do Brasil.
Cento e cinco anos desde que, aos 6, fez sua primeira nota musical com um instrumento que na época era novidade: a flauta de cordas. Aos 9, ele criou um chapéu musical, o qual ajudava os surdos a sentir a música. Desde pequenininho, fora estimulado pela comunidade a aflorar seu âmbito artístico que, por sua vez, era conectado com todos os outros âmbitos da vida.
Todas as crianças da comunidade sabiam fazer algo com o coração, porque viam isso todos os dias sendo feito pelos adultos. Aliás, os adultos tinham muito tempo para sentir, já que, há quatro décadas, fora instituído as oito horas de trabalho – mensais!
O revezamento era anual; se assim desejassem, as pessoas poderiam escolher por aprender algo novo e mudar de trabalho. Seu Oamó contou sobre alguém do século anterior ao anterior do retrasado. Alguém cujo pensamento ultrapassou seu próprio tempo, teorizando mais ou menos sobre isso. Como era o nome do conceito mesmo? Onilateralidade. Seu Oamó lembrou. Era incrível como ele sabia de tudo, lembrava de tudo! E sem usar o Equipamento da Memória e Tradição, famoso por resgatar memórias coletivas e tradições orais antepassadas.
Na Escola Politécnica de Formação Pluriprofissional, as crianças imaginam soluções criativas para os problemas que, mesmo no alto grau de desenvolvimento humano, ainda não foram completamente erradicados. Um deles eram as pandemias. Com um mundo altamente interligado, não pelo famigerado “mercado”, mas por uma Rede de Saberes e Culturas, é mais fácil a disseminação de doenças infecciosas, infelizmente.
Felizmente, acontecem com menos frequência, pois não existe uma tal de “indústria farmacêutica” que funciona em prol do tal “mercado”. Antigamente, grandes “cientistas” despendiam seu tempo se dedicando ao que não importava. Hoje, são das crianças o Conhecimento Fundamental necessário ao desenvolvimento da maioria das tecnologias atuais. Há 30 anos, descobriu-se algo que convencionamos chamar Energia Inicial, um campo energético acessível ao cérebro humano apenas na sua primeira década de vida.
Seu Oamó conhecia muito de pandemias. Sua estimuladora (uma evolução do que antes chamava-se “professora”), contou como foi a pandemia do coronavírus, há dois séculos. Alguns ditos “governantes”, pessoas que se sentiam acima daquelas que as escolheram para exercerem momentaneamente função de tomadas de decisões maiores, não se preocuparam com a pandemia. Pelo contrário, a utilizaram para aumentar a desigualdade e explorar ainda mais a força de trabalho do povo.
Ao invés de pararem tudo para fortalecer o Sistema de Saúde e a ciência, como se faz na época Pós-Transformadora, ironizaram-nas. Contou que até retiraram o “salário” de quem pesquisava formas de contenção da doença. Foi liberado mais de um trilhão em dinheiro entre os “bancos” para manter a “taxa de lucro”, o que significa basicamente doar a quem não precisava, enquanto quem mais necessitava padecia nas antigas “periferias”, onde moravam os super explorados.
A luta continuava sem centralidade na sobrevivência humana, muito menos no seu desenvolvimento. A luta contra o tempo, para evitar o congestionamento do sistema de saúde, se transformou em luta contra os pobres, que não tinham tempo para se cuidar como deveriam. O mundo, após a pandemia, era outra, mas nada de novo. Os direitos conquistados arduamente por uma parte da população foram abruptamente retirados, o que causou uma revolta incontida. Foi aí que se iniciou o Processo Transformador.
Para mudar isso, o povo percebeu que precisava de luta, mas não individual, esparsa. Luta organizada! Foram muitos anos de organizações populares para acumular toda a força necessária para derrubar os donos do tempo.
E por falar em tempo.... Há alguns anos, não falamos mais em “tempo livre”. Todo o tempo é livre. Com tanto tempo sobrando, todo dia é uma nova invenção que o cérebro humano, hiperdesenvolvido, compartilha em algum lugar do mundo e, automaticamente todos os territórios a conhecem.
As novidades são muitas, e o sistema de comunicação tão eficaz que as fake news se tornaram obsoletas há quase meio século!
Por falar em novidade, quando Seu Oamó nasceu, algumas delas eram apenas ideias, como o Sistema de Criação Único, em que todos da Comunidade compartilham os cuidados dos seus filhos. Seu O só conheceu o Sistema aos 8 anos, quando a Comunidade escolheu aderir a ele. Algumas comunidades, por circunstâncias específicas, ainda não o fizeram.
Há cinco anos, Seu Oamó presenciara o centenário da Grande Transformação Popular. Foi bonito que só! Lá na Rua das Grandes Folias, onde outrora se delineava a Folia de Reis - festa ainda muito presente na memória do povo que ali habitava -, a comunidade do Seu O comemorara com fartura de música os 100 anos da Real Liberdade.
A partir de instrumentos feitos de taquara, a Comunidade Bom Reviver fez um cancioneiro todo com notas realizadas neste material muito utilizado na região alguns anos antes da pandemia. Objetos de taquara foram recriados artificialmente após grande desastre causado pela atividade minerária exploratória o ter eliminado. Sim, às vezes tinham que recorrer à tecnologia para não perder da memória coletiva o que o Sistema Anti-Povo um dia destruiu.
Naquele dia da visita, Seu Oamó colocou o chapéu musical e contou um pouco como era a vida quando as pessoas ainda tinham que comprar seus alimentos. Até a primeira década de vida de Seu Oamó, ainda não tinham encontrado um substituto à moeda que fosse universal. Disse ele que, na sua antiga família, substituída agora pela comunidade, seu avô trabalhava noite e dia e ainda assim não conseguia dar comida aos filhos. Imagina só! Que loucura!
Saímos de lá atordoadas com tanta história boba e surpreendentemente real de Seu Oamó. Ele lia muito para entender como era o Velho Mundo. Como de praxe, ele nos deu, a cada uma, dois livros da Biblioteca Popular para continuarmos nossos estudos e potencializarmos nossa atuação que, na época, era de Garantidora de Direitos Comunitários: uma profissão originada da antiga advocacia. Sem Estado e sem Direito, as pessoas precisavam apenas de alguém que as explicasse e aplicasse coletivamente o que estava no Estatuto Comunitário.
Então, as Garantidoras viajavam todas as semanas para lugares diferentes, conversavam com moradores e moradoras sobre a realidade e necessidades específicas de cada comunidade e propunham soluções para pequenas controvérsias diárias enfrentadas pela população local, com base em estudos anteriores e na comparação com outras comunidades do mesmo território.
Assim, garantiam também um presente sempre melhor do que o passado e pior do que o futuro. Num avanço exponencial do que se tornou a Grande Comunidade Humana.
Giovana Mendonça Galvão é assessora jurídica dos atingidos pela Barragem do Fundão/MG, mestranda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto e militante da Consulta Popular.
Edição: Elis Almeida