Para a defesa da democracia é preciso um programa, que não se esgota no afastamento do presidente
É preciso afastar Bolsonaro do poder para o bem do país e pela defesa da vida das pessoas. Muitos caminhos vão sendo apresentados, desde as ações próprias das diferentes esferas de poder que compõem os vários estágios do jogo institucional aos protestos na rua. Possivelmente, como a política recente nos mostra, será preciso juntar as duas pontas. Condições formais e força popular.
Muito pode ser debatido no campo mais amplo desse processo, que abarca as dimensões da política, da economia e da vida em sociedade. Análise de correlações de força e de cenários viáveis. Frente de esquerda ou frente ampla. Continuidade do governo com o vice ou nova eleição. Luta focada nos descaminhos do governo ou na matriz neoliberal que o sustenta. Conquista de hegemonia ou fortalecimento da revolta.
Essas são algumas das questões que tomam conta do ambiente de caos que vai se estabelecendo no Brasil e exigindo uma ação urgente e de grande abrangência. Já passou o tempo de esperar pelo pior como uma sombra que caminha do horizonte para o céu que está sobre todos nós. O pior já se tornou o chamado novo normal. Não é possível cair mais na escala civilizatória.
No entanto, há uma dimensão, que pode ser considerada psicológica ou individual, que coloca em destaque o papel do sujeito nessa história. Descontentes de todos os matizes, inclusive eleitores arrependidos de bancar a extrema direita que nunca se escondeu, parecem reduzir sua participação neste momento dramático a um gesto de insatisfação. Ou a um desejo, mesmo que ardente, de mudança. É um sentimento real, quase sempre imobilista ou cínico.
Assinar manifestos, participar de petições on-line, usar redes para manifestar descontentamento tem sido um caminho que pode gerar descompressão de uma culpa mal digerida, mas que não vai muito além disso. É o que, no caso da imprensa tradicional, tem sido traduzido pelo ato de pular a autocrítica para ir diretamente à defesa de um grau controlado de oposição. Iluministas sem risco de valores universais que foram postos de lado.
Há uma defesa consentida que vai da liberdade de expressão – sem crítica do modelo de monopólio nem da atuação convocatória do golpe e da execração dos governos de esquerda –, à valorização dos bons modos e do conhecimento científico. O que é muito pouco frente ao festival de asneiras oferecido pelos integrantes do governo. Nada que afete o grande jogo que gerou a crise em que meteram o país, Guedes e Moro incluídos.
É preciso um pouco mais de esforço. Só o desejo não liquida a fatura. Mudar de atitude implica, além da crítica elegante e do emparelhamento ocasional com ex-adversários em nome de um bem maior, algumas atitudes assertivas. Não é preciso que o centro e a direita deixem suas posições, mas precisam virar gente. Não é aceitável um pacto tão amplo que conviva com a destruição dos direitos já extirpados da sociedade brasileira, como grau zero da frente ampla.
O que se espera dos novos pactuários da democracia é a defesa de um programa mínimo, que não se esgota no afastamento do presidente, mas de tudo que se consagrou sob seu tacão como solo salgado pelo arbítrio. O que indica, naquela chave psicológica, a obrigação de agir pessoalmente contra todas as formas de opressão naturalizadas no período pós-golpe.
Há um esforço pessoal a ser incluído nesse processo, que precisa ser assumido como momento de transição para uma sociedade politicamente complexa, plural e madura. A discordância está considerada, mas a desumanidade não. Um horizonte sem Bolsonaro, mas com bolsonarismo econômico embutido, por exemplo, é um embuste desnecessário.
Na virada do século 19 para o 20, uma jovem russa, Sabina Spielrein, procurou tratamento psicológico em uma clínica da Suíça. Foi paciente de Bleuer e depois de Jung. Trabalhou seus conflitos típicos de uma sociedade conservadora e dividida, descobriu componentes destrutivos em seu espírito e os enfrentou com determinação. A psicanálise mudou sua vida. Realizou o grande desejo de se tornar médica e depois passou a tratar de pacientes com sofrimentos psíquicos.
Foi a primeira paciente da história que se tornou psicanalista. Fez a passagem, certamente difícil, da posição de objeto de cuidados para sujeito da relação de cura de outras pessoas. Tudo começou com o desejo. Mas teria se esgotado nele caso não houvesse o trabalho pessoal de honrar seus impulsos mais criadores. Como lembra a psicanalista Giovanna Bartucci, “não basta desejar para ser. É preciso tornar-se”.
Há momentos que a psicologia e política se dão as mãos e parecem reescrever esse princípio humano por outros caminhos. Não basta a razão para mudar o mundo, também é preciso o desejo. Mesmo que não seja por si só suficiente, sem ele não se dá nem bom dia. Não é um acaso que as ações do atual governo brasileiro se concentrem tanto na contenção do desejo, na proibição das manifestações de Eros e na demonização do sexo. Todos às camas. Todos às ruas.
Edição: Joana Tavares