Bolsonaro não é conservador, porque não sabe o que conserva. Ele é uma nulidade
Ninguém governa sozinho numa democracia. Além da necessária articulação entre os três poderes, que aponta para o sentido coletivo e compartilhado do ato de governar, é preciso ter turma. Um presidente, governador ou prefeito não sabe tudo e por isso precisa se cercar de pessoas com competência em vários setores. Burocracia, nesse sentido, tem um valor até positivo, já que se traduz na capacidade de organizar um time capaz, profissional e honesto. Pelo menos em tese.
Além disso, é próprio do regime democrático que a participação popular não se limite ao momento do voto. O escolhido para exercer o mandato executivo tem que seguir as leis, honrar a Constituição e respeitar as instituições. Precisa seguir os valores universais, como os direitos humanos e a liberdade de expressão, e se abrir à crítica e vigilância que venha dos movimentos populares, dos conselhos e órgãos de controle. Ou seja, um mandatário ganha a rodada, mas não pode levar tudo e passar por cima das regras.
Uma das consequências desse jogo é que, de acordo com o resultado da eleição, o governo formado deve representar o projeto que foi aprovado nas urnas. Inclusive em termos do grupo que vai compor o poder. A suposição é que cada candidato e, no limite, cada expressão político-ideológica, tenha sua retaguarda de pessoas capazes de ocupar os cargos mais importantes, dando tradução na prática ao que apresentou na campanha. Vem daí, por exemplo, a ideia saudável de alternância de poder.
O Brasil de Bolsonaro mudou essa história. Para pior. O país está às voltas com a escolha do terceiro ministro da Educação. Na Saúde, em plena crise sanitária, com centenas de milhares de casos e dezenas de milhares de mortes por covid-19, já rifou dois ministros e a pasta está nas mãos interinas de um general especializado em logística. Na Cultura, foram cinco péssimos secretários, inclusive um nazista assumido. No entorno do presidente, os cargos palacianos também dançam entre acólitos, militares da reserva e bajuladores.
A constatação é singela: o presidente, em mais de 30 anos de vida pública, não aprendeu nada. E, o que é mais grave, não se dispôs a conviver com quem sabia, preferindo a aliança orgulhosa com a ignorância. O resultado, além do isolamento, foi a perda de toda a capacidade de convocar pessoas com qualidade para assumir tarefas de governo. Mesmo nas hostes da direita. Bolsonaro não é conservador, porque não sabe o que conserva. Ele é uma nulidade que se guia por princípios gerais pouco claros, todos eles regressivos.
Com isso, a montagem de seu governo é um misto do pior possível com a surpresa desagradável. No campo do pior possível, coloca em prática aquelas certezas macabras, como o desprezo pelo meio ambiente, pela liberdade, pelos direitos humanos e pelas relações multilaterais, entregando os setores afins a nomes inqualificáveis. Não deveria surpreender ninguém as ações de Ricardo Salles, Damares e Ernesto Araújo, por exemplo: eles são a tradução exata do bolsonarismo histórico.
No capítulo das surpresas, entra em cena a falta de turma do capitão escanteado pelo corporativismo de caserna. Bolsonaro inventou nulidades como Weintraub, Alvim, Sérgio Camargo, que despontam do nada para coisa alguma. São nomes que dão ainda a certeza da fragilidade dos quadros da extrema direita brasileira, uma realidade que precisa ser apresentada em toda sua abrangência. O presidente não apenas escolhe mal, mas não dispõe de um grupo ao qual se dirija em caso de necessidade de auxiliares. Sua única saída, no vazio que o cerca, é apelar sempre para os militares. As forças armadas são seu beco sem saída, sua sinuca de bico.
Há quem defenda que havia um núcleo de racionalidade, que foi formado por Moro e Guedes e alguns nomes de prestígio entre os militares. O ex-juiz, depois de dar legitimidade ao presidente e cumprir mais uma vez sua função de limpar a área para exercício do arbítrio punitivista, caiu fora para tentar preservar seu capital político. Acostumado a dar a última palavra, não entendeu que a sentença de morte foi dada ele pelo presidente: estava condenado a ser coadjuvante pelo menos até 2026, horizonte de tempo muito distante de sua ambição e vaidade. Inventou uma crise que se desenrolou como uma peça de teatro chinfrim, com direito a entrevistas coletivas e apresentações ao vivo.
Paulo Guedes entregou logo o serviço sujo da desregulamentação e defesa do ultraliberlismo autoritário, um pacote de precarização do emprego, privatização e desnacionalização da economia. No entanto, foi envolvido por uma crise econômica que era inevitável e foi acelerada pela pandemia, ficando refém de um trabalho que o desagrada: distribuir renda, ainda que pouca, precária e emergencial. Já os militares se dividiram, como é próprio de suas personalidades públicas, entre o rigor e a obediência. Ficaram os obedientes.
A tragédia do governo Bolsonaro, além do próprio, está expressa nessa ausência de gente para chamar de sua. Ele não conhece sanitaristas para ocupar o Ministério da Saúde. O SUS e a pesquisa brasileira no setor, reconhecidos mundialmente, são exercidos em instituições que ele não respeita, não compreende e acusa o tempo todo de serem ocupadas pela esquerda. Não vai ser fácil encontrar um nome expressivo na extrema direita para dar conta da complexidade sanitária do país. No máximo vai surgir um defensor de vermífugos para covid-19 ou um empresário da iniciativa privada vocacionado para minar os princípios do SUS.
Ele não tem educadores ao seu lado, sua trajetória é de quem despreza o conhecimento – ou não teria em Olavo de Carvalho seu totem e tabu – a ciência, a crítica e a pluralidade. Seu modelo de educação é papai e mamãe ensinando em casa, redução de investimento para ciência básica e humanas, pesquisas tuteadas pelos interesses de mercado. Sem falar do fundamentalismo evangélico e da ênfase em disciplina exportada das escolas militares para projetos chamados de cívico-militares. Ou seja, vem outro Vélez Rodriguez ou Weintraub por aí.
O drama do governo federal se reproduz em estados e prefeituras que se elegeram na sombra do presidente. Executam o mesmo figurino, enfraquecendo a gestão pública para abrir caminho para os interesses do mercado. O recado, daqui para frente, parece claro: a extrema direita não sabe governar democraticamente, não tem reflexão e experiência em políticas públicas, não tem quadros preparados e não gosta de gente. Quando olham para o lado, não encontram ninguém e por isso devolvem o olhar com ódio.
Há, entretanto, os que candidamente falam em transição respeitosa e frentes amplas o suficiente para abrigar golpistas de ontem, antidemocratas de anteontem e arrivistas de sempre. Não são ingênuos, apenas armam o cenário para recompor seu governismo estrutural. Bolsonaro, para eles, é uma gripezinha. Quem aceitar o convite, não reclame depois.
Edição: Joana Tavares