A covid-19 chegou ao Brasil com o país fragilizado em sua melhor arma contra a doença: o SUS
Quando a pandemia do novo coronavírus foi decretada pela Organização Mundial de Saúde, havia apenas uma constatação em meio a muitas incertezas: a melhor forma de enfrentar o problema seria com um sistema de saúde universal, com atenção integral, norteado pelo princípio da equidade, organizado desde a base, com estrutura de comando compartilhada, que carregasse experiência em programas de saúde coletiva e com controle social que permitisse uma ampla aliança com a população. Em outras palavras, o Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS.
Considerado em todo mundo um avanço em termos de estrutura, organização de serviços, pensamento sanitário e engenharia política, o SUS, depois de mais de 30 anos, seguia como inimigo das políticas neoliberais para o setor. Nem mesmo o reconhecimento internacional foi capaz de barrar a cruzada contra o sistema. Que não é de hoje. Da PEC 95, que retirou recursos da saúde, ao desmonte das políticas públicas chegando ao incentivo do mercado da saúde privada, o SUS tem uma história de confrontos permanentes. O estrangulamento dos recursos convive com o ataque a todas as iniciativas de ampliação e melhoria dos serviços.
Nessa hora, parece que mesmo as conquistas incontestáveis - como as campanhas de vacinação, o controle da aids, a estratégia saúde da família, os programas de aleitamento materno, a diminuição da mortalidade infantil, o desenvolvimento de ferramentas epidemiológicas próprias para nossa realidade - estão sendo jogadas de lado. Vale apenas o mantra do “caos”, a apresentação de tecnologias inacessíveis no Fantástico, a glamorização da profissão médica como um patamar de valorização no mercado, em detrimento de uma visão holística de saúde e bem-estar.
O governo brasileiro parece ter visto na pandemia uma oportunidade de radicalizar a destruição de seu sistema público de saúde
O país, que sempre gastou pouco com saúde em comparação com as nações de mesmas características, encontrou nas políticas de austeridade um biombo para cortar ainda mais o investimento no setor. Para levar adiante esse projeto, que nada mais é que a transferência de recursos do setor público para o mercado lucrativo, tem sido perpetuada a ideia de entrave da má gestão, sanável apenas pela participação do setor privado. A isso foram se somando a desregulamentação do trabalho dos profissionais, o enfraquecimento do papel dos conselhos, a tendência privatizante por meio de agências, que atingiram até mesmo a assistência básica.
Foi nesse cenário que a covid-19 chegou ao Brasil, com o país fragilizado em sua melhor arma contra a doença. Enquanto muitos países buscaram rapidamente montar estruturas que seguissem as diretrizes do SUS, o governo brasileiro parece ter visto na pandemia uma oportunidade de radicalizar a destruição de seu sistema público de saúde. Como um dos mais potentes símbolos desse descaso, o Ministério da Saúde perde o papel condutor, descarta ministros em favor de uma linha de comando militarizada, que defende ações anticientíficas e potencialmente genocidas. Coloca instâncias de governo em guerra.
A fragilização do SUS, nesse sentido, não é uma consequência da escalada da pandemia, mas um projeto que se escora na situação dramática da população, para “passar a boiada” privatista. Corte de recursos (mesmo os orçamentários estão sendo represados), desprezo com critérios técnicos e científicos, desrespeito com os profissionais, desmonte do princípio da equidade com a separação inconcebível entre atenção privada e pública em lugar de comando único, subordinação dos princípios sanitários à pressão do setor econômico são algumas das picadas por onde o gado deve caminhar daqui em diante. O SUS corre risco de morte. Os urubus já rondam.
Quem acende uma vela ao capeta não pode depois se carpir com sua devoção à Nossa Senhora Aparecida, como fez Mandetta
Além do ataque ao sistema como um todo, faz parte da estratégia de desmonte o combate a políticas setoriais do campo da saúde que encontraram reverberação nos princípios do SUS. Sobretudo aquelas que dizem respeito à humanização, democratização do acesso, sustentabilidade, respeito com as diferentes formas de vida e controle da violência. Inscritas no coração do Sistema Único de Saúde, ações referentes à saúde indígena, à preservação do meio ambiente e vigilância contra uso de venenos na agricultura, fortalecimento das políticas de desarmamento, valorização da atenção primária e atenção humanizada à saúde mental sofrem continuado combate por parte dos adversários do sistema público. Uma coisa é matar o SUS pelo confronto direto, outra é minar suas políticas específicas. É preciso cerrar fileiras nas duas estratégias.
O caso do ex-ministro Mandetta é exemplar de como é necessária atenção em todas as frentes. Afastado do Ministério da Saúde pela defesa de uma atuação fundada nos valores da ciência e da transparência, o mesmo político foi um dos defensores, logo no início do governo Bolsonaro, da extinção do Mais Médicos, do questionamento das políticas específicas para os povos indígenas e da retração dos recursos para saúde. Apelou para a ideologização que deixou milhões desassistidos, propôs entregar o programa de saúde indígena aos municípios já assoberbados com suas demandas e acusou a área de padecer de má gestão crônica. Quem acende uma vela ao capeta não pode depois se carpir com sua devoção à Nossa Senhora Aparecida, como fez Mandetta.
Sociedade sem manicômios
Um dos setores que tem enfrentado há mais de três décadas a marcação cerrada anti-SUS é o de atendimento à saúde mental. A chamada luta antimanicomial, que propõe uma sociedade sem hospícios, pautada pela humanização dos cuidados e reconhecimento da singularidade do sujeito, se consolidou no país como lei e depois como prática construída coletivamente. A proposta de acabar com os hospitais psiquiátricos e substituí-los por serviços ambulatoriais multiprofissionais, inclusivos e capazes de restituir a autonomia e liberdade das pessoas, é uma das maiores conquistas civilizatórias da reforma sanitária brasileira. Talvez, por isso mesmo, uma das mais combatidas.
O mercado da saúde mental hospitalizada sempre foi lucrativo e ineficiente
O mercado da saúde mental hospitalizada sempre foi lucrativo e ineficiente. E ineficiente exatamente para ser lucrativo. A grande jogada dos defensores do modelo asilar é que se trata de um atendimento que respeita a ciência médica, com seus medicamentos e procedimentos brutais e despersonalizantes, ao contrário das práticas que humanizam e socializam a pessoa que sofre. Para os falsos partidários da “ciência”, a segregação da loucura é um gesto de proteção do paciente e da sociedade. Nada mais mentiroso, como a história vem demonstrando desde o século XIX.
Na verdade, e é bom frisar isso em momento de tanto descrédito da ciência, a segregação da loucura não é uma atitude que vem do conhecimento, mas da política. A função do hospício, como se sabe, é exatamente produzir o louco como pária improdutivo ou portador de um comportamento singular. Dessa forma, a luta antimanicomial não é somente a melhor alternativa para a saúde das pessoas que sofrem, mas a mais evoluída forma de saber sobre os processos mentais. A melhor ciência e conhecimentos vindos da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise estão do lado da desospitalização.
É possível listar dezenas de motivos que fundamentam uma sociedade sem manicômios, além da melhor qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias. Em primeiro lugar, trata-se de uma política que é mais econômica e eficiente, que rompe com o ciclo sem fim das internações e reinternações, sem qualquer efeito, que consomem recursos e dão em troca uma falsa sensação de acolhimento, que na verdade se traduz na extirpação do paciente da vida comunitária. O hospital psiquiátrico não é apenas menos humano e resolutivo, é muito mais caro, constituindo-se numa autêntica indústria para capitalistas da saúde e seus sequazes.
A morte do SUS pode ser precedida do extermínio da liberdade pela mais abjeta forma de opressão: a defesa do ódio contra o outro
A segunda razão não precisa de muitos argumentos, é só acompanhar a vida de uma pessoa internada num asilo e perceber como tudo muda quando ela é acolhida num serviço que respeita a dimensão humana da pessoa. Tudo que é encarceramento, opressão, despersonalização, afastamento da comunidade e retificação forçada do imaginário é transformado em autonomia, criatividade, alegria e abertura para novas formas de compreensão da vida. Mas talvez o maior benefício da sociedade sem manicômios seja menos dos pacientes e seus próximos e mais da sociedade, que pode com isso aprender a se expandir e a conviver com a diferença. O que é um dos maiores desafios de nosso tempo.
Estamos na iminência de perder grande parte dessas conquistas em nome de uma visão de mundo que funde o interesse econômico, o preconceito e a exclusão social. Não é um acaso que retomada da investida em favor dos hospitais psiquiátricos ocorra de forma tão destacada nesse momento de nosso retrocesso civilizatório. A morte do SUS pode ser precedida do extermínio da liberdade pela mais abjeta forma de opressão: a defesa do ódio contra o outro.
Edição: Antônia Sampaio