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PANDEMIA

Artigo | A Peste, livro que nunca se esgota e traz reflexões para o presente

Em situações de ‘peste’ somos levados a concluir que o indivíduo é secundário frente à experiência do coletivo

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
homem, máscara
"A ‘peste’, nesse sentido, é algo minucioso que se expressa nas notas da vida e se torna imperceptível. Em outros termos, é algo multifacetado, é diluído no dia a dia." - Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Os livros dados como clássicos são todos aqueles que nunca se esgotam numa primeira leitura, carregam sempre uma nova palavra aos seus leitores. É clássico o livro inesgotável aos olhos do humano, por isso são sempre atemporais, passíveis de serem reavaliados, tornando-se fontes de novas ideias e significados. Assim, o clássico romance de Albert Camus - “A Peste” – reveste-se de uma nova ou de uma nova-antiga voz que ecoa na história humana.

Em sua narrativa, busca ser mais uma testemunha das atrocidades imputadas na história da humanidade pelo lado sombrio do humano. Nesse romance, busca-se narrar de forma alegórica a invasão nazista, ou melhor, a infecção nazista na França, na II Guerra Mundial. De todas as palavras escritas, a marca fulcral, na ótica do autor, é a relutância do primado do coletivo sobre o indivíduo. A insuficiência do indivíduo, por vezes, só se torna clara diante de grandes ‘pestes’ na história, pois o ser humano sempre corre o risco de esquecer-se do seu aspecto comunitário frente ao culto ao Ego.

São em situações de ‘peste’, mesmo que se negue, que somos levados a concluir que o indivíduo é secundário frente à experiência do coletivo numa sociedade

É de fácil esquecimento daquilo que lhe permite viver no chegar no mundo – o outro, a negação da mortalidade e da fragilidade humana fazem parte do cotidiano do nosso tempo. São em situações de ‘peste’, mesmo que se negue, que somos levados a concluir que o indivíduo é secundário frente à experiência do coletivo numa sociedade. Em outras palavras, nada digo que já não tenha sido falado em outros discursos como o da casa comum: somos todos interligados, enfim, percebemos que existe uma dependência do Ego para com todos os outros.

Os fatos, que deveriam causar náuseas, se tornam apenas mais um evento rotineiro

O fato de negarmos não anula a primazia da dependência, o esquecimento dessa norma poderia até ser nomeado como o estado da mesmice, característica da cidade fictícia de Orã, que é palco da história de Camus. A mesmice daquela cidade pode ser a mesma dos nossos tempos em que homens, mulheres, cotidiano, vida podem já estar no estado da mesmice, ou seja, num estado inalterado e que nada o surpreende.  

Os fatos, que deveriam causar náuseas, se tornam apenas mais um evento rotineiro. Crescimentos nos números de mortes se tornam apenas estatísticas, fuzilamentos de crianças nas periferias são apenas erros de percurso e tantos outros eventos da atualidade. A mesmice é um sintoma tão absurdo que quando instaurada é invisível e até mesmo negada, pois anula a capacidade de pensar do humano. Tal é o fato que ela já não é filha do hoje, mas do ontem.

O ontem mencionado não é todo o nosso passado, mas os momentos que a vida deixa de ser defendida, que a vida é devorada por um sistema que tem por primazia o lucro e a competição. A mesmice, em suma, se instaura quando o ser humano relega para outros a sua capacidade de pensar por si só. Assim, num sentido reflexivo podemos nos perguntar: O que é a Peste? Onde ela verdadeiramente está?

Basta olharmos para o passado e vermos no genocídio judaico ou no presente lábios espumantes de homens e mulheres que gritam por destruição, por mortes e ‘e daís’

Na fictícia história de Camus, podemos obter migalhas de respostas para respondermos a essa pergunta de aspecto metafísico. Ao narrar o auge de uma pandemia, onde todos desconhecem, mas que acomete e aniquila grande parte da cidade de Orã, dois amigos, o residente Torrou e o médico Rieux, conversam. Nesse interlúdio de amizade, resolvem dizer, em palavras semelhantes, que a epidemia não ensina nada, pois a verdadeira ciência é que cada um traz em si a peste.

Ora, como discordar de resolução tão fática que chega a se naturalizar nos ouvidos do leitor. A força vertiginosa capaz de matar milhares e milhares de pessoas está acoplada no íntimo humano, na negação da racionalidade e na negação do primado da coletividade. Basta olharmos para o passado e vermos no genocídio judaico ou no presente lábios espumantes de homens e mulheres que gritam por destruição, por mortes e ‘e daís’.

A ‘peste’, nesse sentido, é algo minucioso que se expressa nas notas da vida e se torna imperceptível. Em outros termos, é algo multifacetado, é diluído no dia a dia. É fácil distinguirmos o azul do cinza, o bem do mal, mas é mais difícil distinguir as várias tonalidade de cinzas e as várias facetas do ódio. Doutra forma, um dos caminhos contra essa mesmice é o da vigilância para não transmitirmos a infecção que habita em cada um de nós – o micróbio que é o natural, um descuido qualquer e teremos em mãos o flagelo frente às vítimas.

“O homem direito, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possíveis” (CAMUS,2017, p.235). Na filosofia do romancista, o personagem Rieux, médico que não cansa de cuidar daqueles que caminham para a morte, é a figura do homem revoltado. O homem revoltado não é aquele anarquista social, mas é aquele que continua fazendo, mesmo que o efeito de sua ação seja mínimo ou até mesmo nulo, mas que continua por seus princípios.

O ódio dos homens vai passar, os ditadores perecerão e o poder que tomaram do povo retornará ao povo... a liberdade nunca perecerá!

Outrossim, que sejamos esperançosos, que não desanimemos e que na medida do possível ressuscitemos as grandes obras humanas que nos alertam dos perigos e que nos ensinam com os erros. Nas palavras do barbeiro judeu de Charlie Chaplin: “[Os] Homens que o desprezam, escravizam.... tratam vocês como gado e os usam como bucha de canhão. homens antinaturais, homens mecânicos. Vocês não são máquinas, vocês não são gado! Vocês são homens! Têm o amor da humanidade em seus corações, milhões de homens, mulheres e crianças desesperados – vítimas de um sistema que leva homens a torturar e aprisionar inocentes. Aos que podem me ouvir, digo: não se desesperem. O ódio dos homens vai passar, os ditadores perecerão e o poder que tomaram do povo retornará ao povo. A liberdade nunca perecerá!”.

Enfim, que o caminho seguido seja o da paz e, esse, nas palavras de Camus, é o da simpatia!

Edição: Antônia Sampaio