Já são quatro meses de isolamento social e um protocolo severo de higiene para prevenir a transmissão do coronavírus. As mudanças na rotina, que envolvem teletrabalho associado ao fechamento dos serviços públicos – como escolas e creches, tem afetado diretamente toda a sociedade, principalmente mães, pais e as próprias crianças.
Pode não parecer, mas as crianças têm sentido a pandemia e reagido de diversas formas a este momento. “A reclusão, em alguma medida, afeta as crianças que tiveram suas rotinas alteradas. E elas também são afetadas indiretamente pelo estresse dos adultos”, comenta o psicólogo Fabrício Ribeiro, que é professor da PUC Minas e conselheiro do Conselho Regional de Psicologia (CRP).
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Para o especialista, a pandemia obrigou uma readequação de rotinas tanto de adultos, quanto das crianças. E isso causa diversos transtornos provocados pela convivência intensa e pela ausência de atividades no espaço público. No entanto, ele alerta que são várias realidades, mediadas pela condição financeira da família, pela estrutura da casa onde as crianças ficam, pela condição do bairro ou pela possibilidade de fazer ou não o isolamento social.
“Mesmo assim, as crianças sofrem com a diminuição de possibilidades de laços, de poder brincar, de encontrar com a cidade. Isso com certeza produz sofrimento. Nenhuma forma de aprisionamento é bem vinda. Se alguém tinha dúvida de que ficar num espaço recluso fazia mal pra saúde mental, a pandemia vem mostrar isso para gente”, reflete.
Novas rotinas
Talita Silva, professora da rede estadual de Minas Gerais, conta que estabelecer uma rotina junto com suas duas crianças, uma de 3 e outra de 2 anos, é um desafio que se tornou ainda pior após a adoção do teletrabalho. “A falta de rotina gera muita insegurança e elas [as crianças] ficam muito irritadas. E vou inventando várias atividades. Antes do teletrabalho, estava bem melhor, porque eu ficava o tempo todo com eles. Quando começou o teletrabalho, foi mais complexo, elas não aceitaram muito bem”, relata.
Inaiá, a filha mais velha de Talita, frequenta a escola desde muito pequena, quando tinha 1 ano. E a falta da escola tem sido difícil para ela. “Ela gosta muito de socializar. A gente vai tentando substituir por algumas coisas, mas no fundo tem que esperar. Ela sabe que vai passar, já conversei com ela sobre a vacina e ela entende bem”, conta Talita. Airan, que ainda é bem pequeno, entrou na creche poucas semanas antes do isolamento, o que afetou pouco seu comportamento.
Crianças também são afetadas indiretamente pelo estresse dos adultos
Para minimizar o impacto, Talita tenta manter os horários da creche e preenche o tempo com diversas atividades lúdicas para diminuir o tempo de televisão. “Uma das coisas que entendi, é que as crianças gostam muito de novidade. E às vezes, a gente pensa que é algo difícil, mas quando eu desenho um unicórnio no papel, eles já ficam um tempão mais tranquilos. E a televisão parece que tranquiliza, mas isso não acontece”, relata.
A servidora pública Lívia Morena, que tem dois meninos em casa, um de 3 e outro de 1 ano e 10 meses, também tem tentado manter a rotina da escola, evitar televisão e apostar no gasto de energia. “A gente arrumou um pula-pula e um balanço, o que ajudou bastante. E nesse tempo, eles melhoraram muito a relação, têm conseguido ficar brincando juntos mais tempo. Antes eles ficavam a maior parte do tempo longe um do outro, apesar de estarem na mesma escola. E agora eles estão bem companheirinhos”, conta.
Lidar com o trabalho remoto também é uma dificuldade que Lívia está enfrentando. No início, ela achou que seria possível manter a mesma dinâmica de 8 horas de trabalho em casa, das 8h ao meio dia e das 13h às 17h. No entanto, ela teve que dividir o dia com o companheiro: ela assume o cuidado pela manhã e ele pela tarde, enquanto ela realiza o trabalho formal.
“Essa divisão melhorou bastante, porque os meninos entendem que de manhã é a hora de ficar com a mamãe e a tarde com o papai. E aí a gente deixa os brinquedos à vontade para eles e vamos direcionando. E, além disso, tem o trabalho doméstico que não acaba, tem que fazer almoço, que lavar louça, lavar roupa”, comenta.
Eles sentem falta de outras pessoas, querem conversar e interagir
João, que é o mais velho, e Francisco, o mais novinho, passavam o tempo integral na creche. Com o isolamento, Lívia conta que eles sentiram muita falta dos coleguinhas no início, mas hoje já se adaptaram à nova rotina. “Na verdade, apesar de estarem em um espaço menor, eles curtem mais a gente, o que antes a gente não tinha tanto tempo. Mas eles sentem falta de outras pessoas. Quando eles olham pela janela, eles querem conversar com as pessoas, querem interagir, porque aqui ficamos só nós quatro o tempo todo”, conta.
Falando com as crianças
“Não é preciso ter medo de conversar sobre o que está acontecendo com as crianças. Elas já ouviram falar sobre o vírus e é possível explicar de uma forma compreensível e honesta sobre a doença, orientar com relação às medidas de cuidado e prevenção, esclarecer dúvidas e permitir que se expressem a respeito”.
O alerta é feita por pesquisadores que produziram a cartilha Crianças na Pandemia Covid-19, lançada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O texto visa orientar famílias e profissionais de saúde em relação à saúde mental e atenção psicossocial dos pequenos neste momento.
Segundo o psicólogo Fabricio Ribeiro, uma forma de conversar sobre a pandemia com as crianças é por meio da prática e do exemplo. “Como todo processo de educação, é importante inserir os hábitos no cotidiano, por exemplo, sempre lavar as mãos, trocar a roupa. E ir conversando sobre a importância disso. Quanto mais a gente insere isso na rotina da família, melhor. Porque essas mudanças de hábitos vão fazer parte da nossa cultura agora, não tem jeito”, aponta.
Sujeitos de direitos e deveres
Neste mês, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos de existência. A legislação reúne revindicações de movimentos populares que, desde os anos 1970, defendiam que crianças e adolescentes merecem acesso à cidadania e proteção, além de prioridade absoluta nas políticas públicas de saúde, educação, segurança etc.
Edição: Elis Almeida