Milhares de profissionais da área cultural perderam seus postos de trabalhos devido à pandemia. Por essa razão, muitos deles estão sobrevivendo graças a doações de cestas básicas, por exemplo. A ausência de uma assistência robusta para os trabalhadores desse segmento é consequência da crise das contas públicas, segundo o governo mineiro. Ironicamente, porém, esse mesmo Executivo se propôs recentemente a transferir uma volumosa quantia de recursos para o milionário Instituto Cultural Filarmônica.
Filarmônica é o principal dispêndio do poder público estadual na área cultural, gerando concentração de recursos em somente um instituto
Criado em 2005 e fruto da administração de Aécio Neves (PSDB), o instituto é, à luz da lei, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Esse título o impede de buscar lucros e lhe impõe o objetivo de promover apenas serviços de utilidade pública. Internacionalmente reconhecidos pela qualidade, os concertos musicais eruditos são atualmente a principal atividade da organização, sediada no bairro Barro Preto, em Belo Horizonte.
Levantamento da reportagem com base em informações do Portal da Transparência mostra que ao menos desde 2013 verifica-se a Filarmônica como a prioridade da Secretaria de Cultura (a qual hoje engloba o Turismo). Entre 2013 e 2019, o investimento total no instituto foi de R$ 114,4 milhões. Ou seja, cerca de 12,3% dos R$ 929,8 milhões que o Executivo repassou à cultura nesse período.
Excluindo o pagamento de funcionários e a dívida com fornecedores, na esfera cultural, a Filarmônica é o principal dispêndio do poder público estadual.
Em 2019, os 28 institutos culturais não públicos atuantes na difusão cultural, entre eles associações de artes, receberam ao todo R$ 1,7 milhão, enquanto o Instituto Filarmônica recebeu R$ 15,1 milhões.
Essa situação desigual se repete ao menos desde 2013, ano em que os cofres públicos estavam cheios em razão do bom momento econômico do país. Naquela época, 261 organismos não públicos repartiram entre si R$ 13 milhões. A Filarmônica recebeu um pouco mais de R$ 15 milhões.
Nota-se que mesmo em tempos de bonança ou não os recursos à Filarmônica mantêm-se intactos. Por outro lado, nessas mesmas circunstâncias, os demais aparatos culturais não estatais contemplados com dinheiro público são reduzidos, bem como as quantias a eles transferidas.
Disparidade
A Filarmônica integra as políticas culturais do governo mineiro. Como comparação, as políticas promovidas pelo Executivo por meio da Fundação Clóvis Salgado (FCS) custaram, de 2013 a 2019, R$ 103,2 milhões. Ou seja, R$ 11 milhões a menos que o depositado na conta da Filarmônica no mesmo período. Sendo que a FCS atua em cinema, dança, galerias de artes, teatro e na formação de profissionais da arte. Além disso, ela tem também uma orquestra, a Sinfônica, cujos músicos ganham entre R$ 5 mil a R$ 6 mil para trabalharem cerca de 30 a 40 horas semanais. Já na Filarmônica, segundo o 40° relatório gerencial da instituição, seus músicos auferem rendas de R$ 13,7 mil. E trabalham o mesmo tanto.
Outro rol importante de políticas públicas na área cultural são as realizadas pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha), incumbido de administrar museus e o Arquivo Público, guardião da memória do estado. Para as políticas culturais desse organismo, de 2013 a 2019, foram alocados R$ 56,5 milhões. Nem a metade do que foi destinado à Filarmônica.
Fundação Clóvis Salgado (FCS) que atua em cinema, dança, galerias de artes, teatro, orquestra e na formação de profissionais, recebeu de 2013 a 2019, R$ 11 milhões a menos a Filarmônica
Entre as políticas promovidas pela FCS e pelo Iepha duas são cruciais para a área cultural estadual: a democratização do acesso à cultura e a seus mecanismos de produção e difusão cultural. Para esses dois eixos, o investido entre 2013 a 2019 foi de R$ 39,4 milhões. Isso corresponde a apenas 4,3% de todo o montante colocado pelo governo na área cultural nesse período.
“Precisamos de outros palcos”
O que chama atenção no âmbito da Filarmônica é o fato de uma grande parte do dinheiro público, destinado para a Cultura, ser concentrado em somente um instituto, o qual não é acessível para todos. Os ingressos dos concertos podem custar até R$ 150. “Precisamos de outros palcos culturais. A Filarmônica é um privilégio para a burguesia de Belo Horizonte”, disse uma fonte vinculada à Secretaria de Cultura, que preferiu o anonimato.
Setor cultural é o 17° maior ramo empregador em Minas
Ainda segundo esse interlocutor, na Orquestra Sinfônica, vinculada ao Palácio das Artes, verifica-se uma completa escassez de recursos. “Não há dinheiro para comprar objetos básicos, como partituras, por exemplo, nem para comprar ternos dos músicos”, afirmou.
O Instituto Filarmônica foi ainda mais agraciado em 2020. O governo mineiro e o organismo fecharam um acordo, referente ao Edital Secult 01/2020, para a gestão do Centro Cultural Presidente Itamar Franco, conhecida como a Sala Minas Gerais. A intenção é que a organização administre o local nos próximos três anos e sete meses. O valor a ser repassado será de R$ 61,2 milhões.
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A situação dos artistas
Em razão da pandemia, muitos espetáculos foram cancelados. Com isso, milhares de artistas e outros profissionais do ramo cultural enfrentam sérias dificuldades. Muitos estão sobrevivendo de cestas básicas, distribuídas por entidades artísticas e pelo governo estadual em parceria com o setor privado. Desde o início da pandemia até meados de junho, 40 mil pessoas foram beneficiadas com 31 mil toneladas de alimentos arrecadados pelo Executivo.
Também existem diversas iniciativas organizada pelos próprios artistas, como é o caso do Movimento Nos Bares da Vida e do Sindicato dos Músicos Profissionais de Minas Gerais que estão organizando uma campanha para doar cestas básicas aos músicos.
Magdalena Rodrigues, atriz e presidente do Sindicato dos Atores de Minas, acredita que os recursos da Lei Aldir Blanc poderão amenizar a atual situação dos trabalhadores do setor. Essa lei obriga o governo federal a disponibilizar R$ 600 aos profissionais do ramo durante três meses. “Os grupos artísticos estão se ajudando. É um momento muito desafiador. E quem puder nos ajudar, estamos à disposição”, comentou Magdalena. No estado existem 16.500 atores registrados.
“Os grupos artísticos estão se ajudando. É um momento muito desafiador”, afirma presidenta do Sindicato dos Atores de Minas
“Eu não tenho perspectiva boa para o pós pandemia. A situação já estava ruim antes do coronavírus, principalmente por causa do bombardeio da extrema direita à cultura. Não tínhamos recursos de patrocínio, nem de governo e muito menos de empresas privadas”, observou Pedro Paulo Cava, um dos maiores produtores culturais do estado. Ele citou como exemplo da má situação antes da pandemia a perda constante de público nos últimos anos na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança.
Helder Quiroga, cineasta e produtor cultural, também afirma que o setor audiovisual vive os mesmos desafios que os demais segmentos culturais. “Temos, por exemplo, as políticas de incentivo ao audiovisual paralisadas. E já estamos sofrendo um duro ataque desde o fim do Ministério da Cultura. E temos, sim, roteiristas, maquiadores, editores, fotógrafos, entre outros tantos profissionais, passando por sérias dificuldades”, disse. Ele, entretanto, é otimista: “porque o carro chefe da economia criativa aqui no estado é o audiovisual. E Minas tem uma das regulações do setor mais avançadas do mundo. Além de sermos um celeiro artístico. O audiovisual como uma indústria pode salvar a economia do país”.
A plataforma Data Viva do governo mineiro mostra que no país o setor de Artes, Cultura e Recreação é o 16° em números de empregados. Informações de 2017 mostram que a área gerou naquele ano 254 mil empregos. Em Minas é o 17° maior ramo empregador. Nesse mesmo ano foram gerados 30,7 mil postos de trabalho. Ainda de acordo com a plataforma, a cultura é uma das atividades que possui grande potência de contribuir com a economia do estado.
Caso queira doar alimentos aos atores entre em contato no email: [email protected].
Outro lado
Em resposta à reportagem o governo mineiro encaminhou a seguinte resposta:
“Importante reforçar que a Filarmônica de Minas Gerais foi fundada em 2008, a atual gestão buscou dar continuidade à política pública e adequá-la ao modelo jurídico vigente, lançando o edital para gestão da Filarmônica e tornando o processo o mais transparente possível.
A Filarmônica é considerada um dos projetos culturais mais bem-sucedidos do país, tornou-se referência no Brasil e no mundo por sua excelência artística e rica programação, grande parte gratuita. Os reflexos positivos em outras áreas, como, por exemplo, Turismo e Relações de Comércio Internacional são expressivos. Abaixo outros números que demonstram o trabalho de excelência da Filarmônica. Estamos à disposição para mais informações, assim como o instituto que realiza a gestão.
Fonte - Instituto Cultural Filarmônica: “Tendo a aproximação com os ouvintes como um de seus nortes artísticos, a Filarmônica traz à cidade uma sólida programação gratuita– são os Concertos para a Juventude, os Clássicos na Praça, os Concertos de Câmara e os concertos de encerramento do Festival Tinta Fresca e do Laboratório de Regência. Para as crianças e adolescentes, a Filarmônica dedica os Concertos Didáticos, em que mostra os primeiros passos para apreciar a música erudita. Além disso, desde 2008, mais de 50 cidades receberam a Orquestra, de Norte a Sul, passando também pelas regiões Leste, Alto Paranaíba, Central e do Triângulo.
De 2008 a março de 2020, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais recebeu mais 1, 2 milhão de espectadores, realizou 912 concertos e interpretou aproximadamente 1.155 obras de grandes nomes da música mundial. Em 13 anos de existência, a orquestra promoveu 107 concertos em turnês estaduais, 39 concertos em turnês nacionais e 5 concertos em turnê internacional. Além disso, foram produzidos mais 225 webfilmes, 20 deles com audiodescrição, livros, DVDs didáticos, e seis CDs. Em 2019, a Filarmônica realizou 100 apresentações na Sala Minas Gerais, em praças da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e no interior do Estado, com cerca de 122 mil espectadores. Já os concertos didáticos foram assistidos por 7,4 mil alunos de escolas.”
O Instituto Cultural Filarmônica não respondeu até o fechamento dessa matéria
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Edição: Elis Almeida