Minas Gerais

DIA DA INDEPENDÊNCIA

Artigo | Establishment e o bicentenário da independência

"A independência significou a fundação de um Estado e de uma nação que não rompem com os interesses estrangeiros"

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
tropa de choque, pm
"Os donos da pátria dizem que se orgulham de ser brasileiros porque é um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência" - Crédito da foto: Midia NINJA

Establishment é a ordem ideológica, econômica e política que constitui uma sociedade ou um Estado. Designa as elites sociais, econômicas e políticas e que exercem forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes estabelecidos. As instituições, como escola, religião, família e empresas controladas pelas classes dominantes, influem sobre as decisões políticas, econômicas e culturais e detêm o poder acima e por meio do Estado.

O que mais caracteriza o establishment é o senso comum em diversos aspectos da cultura de um país. Contudo, não se compreende o establishment sem o jogo dialético entre o que está estabelecido e as tentativas de mudanças, o vir a ser.  

O fundamento base da Nação norte-americana é a religiosidade cristã, mas reagindo ao catolicismo e à aristocracia europeia. O protestantismo foi doutrinariamente preparado para apoiar empreendedores de negócios no afã de enriquecimento. Essa religiosidade, mais que as leis, é responsável pela conduta social ideal da nação.

O ensaísta e romancista americano, Gore Vidal em sua infinidade de artigos publicados em jornais e revistas analisou com bastante profundidade, o que estava enraizado na cultura dos EUA, determinando o quadro de preceitos legais nas décadas de 1960 e 1970.

O ensaio de Gore Vidal que foi mais contundente foi o intitulado “Sexo é política”. Todas as formas de sexo fora do casamento eram tabus. Embora não houvesse o medo da condenação eterna, os donos da sociedade selecionavam os bem comportados e excluíam os devassos pobres. O aborto era legal só para quem tinha dinheiro.

A democracia que norteou a fundação do Estado americano não removeu a velha ordem patriarcal em que a mulher deveria permanecer reclusa em casa. Uma mulher capaz de sustentar-se e de sustentar os filhos era uma ameaça ao casamento, pois este era uma instituição central, na qual os proprietários do mundo controlavam as pessoas que trabalhavam.

A homossexualidade também representava uma ameaça aos senhores, porque homens que não têm mulher nem filhos para cuidar, não eram obedientes como os pais de família.

Para Gore Vidal, até no tempo do presidente Nixon (1969/1974) havia forte resistência em tocar no assunto desemprego, entre povo, governo e instituições, porque atingia os verdadeiros responsáveis que eram os empresários.

Em geral, os negros são vistos como a maioria de beneficiários da previdência social, enquanto, na verdade são os brancos em número de pessoas e em quantidade de benefícios. Não há como remover essas falsas ideias porque assim está estabelecido.

Nos EUA, muitos judeus e cristãos não gostam de brancos pobres, partindo do velho princípio puritano de que se você é bom, Deus irá enriquecê-lo. Não é verdade, mas é assim que está estabelecido. Há um constante apelo dos donos da pátria para o seu fortalecimento, por meio da solidificação da família. Para eles, a família só podia ser fortalecida se as mulheres não tivessem direitos iguais aos dos homens, nem no mercado de trabalho e nem com relação a seu próprio corpo.

As pessoas declaram estar moralmente de acordo com o que está estabelecido, mas acabam transgredindo. Na década de 1980, nos EUA, uma pesquisa afirmou que 55% das mulheres e 85% dos homens revelaram ter praticado sexo antes do casamento.

Para Gore Vidal, a máxima “salvar a família” significa todo tipo de coisas não relacionadas com estas: apoio à pena de morte; energia nuclear; apoio às ações da CIA e do FBI e expansão do mercado imobiliário.

A independência significou a fundação de uma Estado e de uma nação que não rompem com os interesses europeus

Os salvadores da família viam com maus olhos: transporte de alunos em ônibus, sindicatos de trabalhadores e limite de velocidade para veículos. Em um artigo, o jornalista Podhoretz diz: “A guerra do Vietnam teve mau efeito sobre os americanos porque, agora, aparentemente, não gostamos mais de nenhuma guerra. Antes, a ideia da guerra era natural para os americanos”. O articulista atribui aos homossexuais essa resistência às guerras, querendo com isso, desvalorizar o ideal pacifista, contrário ao que está estabelecido na cultura americana.

No Brasil

No Brasil, como em toda a América Latina, a colonização se caracteriza pela busca de enriquecimento da elite do país de origem. Para tal, há um contrato formal com a Igreja Católica que viabiliza esse radical intento. Ser fiel à religião redundava também em fidelidade ao Reino de Portugal. O padre confessor de Tiradentes, minutos antes de sua execução disse a ele: “Ao rei não se trai nem por pensamentos”.

Com a independência do Brasil em 1922, funda-se a nação brasileira com os mesmos preceitos da época colonial, objetivando somente a mudança de endereço das riquezas para os senhores aqui vinculados.

A independência significou a fundação de uma Estado e de uma nação que não rompem com os interesses europeus. A cultura europeia se impõe no credo religioso, no predomínio da língua portuguesa, no gosto por latim, grego e francês. Nas artes e nas letras prevalece a estética europeia. Um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza.

Os novos donos da pátria têm o poder e o gosto de afirmar que os índios são ignorantes; os negros são indolentes; os nordestinos são atrasados; as mulheres são inferiores aos homens; os trabalhadores são perigosos; os sindicatos de trabalhadores são subversivos.

Os donos da pátria dizem que se orgulham de ser brasileiros porque é um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência. As realidades que dizem o contrário não são ouvidas: pobreza, injustiça social, crianças abandonadas, moradores de rua; massacre de camponeses e indígenas. Tanto tempo se passou desde a independência e foi tudo isso que ficou estabelecido.

Em 1922, com a comemoração do primeiro centenário da independência, boa parte da intelectualidade deu ao nacionalismo um caráter libertário da mentalidade colonialista; busca de uma nova estética que pudesse dar às artes brasileiras uma face própria. No decorrer de todo o século XX, os intelectuais e artistas prosseguiram lutando pelos valores humanistas, combate aos preconceitos; desenvolvimento das ciências sociais e das artes de vanguarda. Na contramão do progresso humanista houve muita reação das elites do poder em defesa do establishment: Os neofacistas com o nome de integralistas, (camisas verdes); o verde-amarelíssimo da União Democrática Nacional UDN; Tradição, Família e Propriedade TFP e outros. 

Os resíduos históricos do conservantismo ainda se fazem presente nesses 200 anos da independência.

Durante e depois do regime militar (1964-1980), o “american way of life”, modo americano de viver, foi aos poucos substituindo a cultura europeia. O cinema, a moda, o contato direto com os americanos, a língua inglesa, a religião evangélica, a música country e sertaneja que substituíram a caipira e a popular brasileira. Enfim, tudo foi americanizado. Até preconceitos que se encontravam inibidos vieram à tona para se identificar com os americanos. O catolicismo importou dos EUA a renovação carismática, mais apropriada à satisfação individual. 

O progresso humanista, o desenvolvimento social, as conquistas democráticas e o processo civilizatório sempre se fizeram no embate contra o establishment. Os resíduos históricos do conservantismo ainda se fazem presente nesses 200 anos da independência. O Brasil continua sendo exportador de matérias primas. Sua indústria de transformação depende de capital, tecnologia e maquinário estrangeiros.

O setor de serviços está comprometido com o capital estrangeiro e depende de importação de equipamentos. A operação Lava Jato destruiu as principais empresas brasileiras, provocando desemprego e renda e fazendo soar no exterior que o Brasil era o país mais corrupto do mundo.

Antônio de Paiva Moura é docente aposentado do curso de bacharelado em História do Centro Universitário de Belo Horizonte (Unibh) e mestre em história pela PUC-RS.

Edição: Elis Almeida