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A bola rola no estádio vazio

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"Se a bola real rola no estádio vazio, a política parece seguir a mesma inspiração no campo também vedado da presença real do cidadão no debate sobre os problemas que lhes dizem respeito." - Créditos da foto: @Mineirao
Imprensa não dá aos cidadãos o direito ao debate sobre os problemas que lhes dizem respeito

A volta do futebol num cenário desfibrado de gente é uma triste metáfora dos nossos dias. Os campeonatos voltaram, com estádios vazios. Ou pior: uma falta preenchida com fotos, faixas e até gravações de uma torcida imaginária. Mas o mais falso, ao que parece, não está nas arquibancadas, mas no próprio futebol. De olho no negócio, a imprensa e as emissoras passaram a exibir uma euforia chocha, marcada por uma paixão que não se realiza na prática. Quase um ato masturbatório.

Tudo o que se fala do esporte está cercado o tempo todo pela dinâmica do negócio e não do jogo e de suas relações com a vida. São os seguintes os assuntos: se os estádios vão ser chamados com nomes de patrocinadores, quem ganhou a concorrência e vai transmitir os jogos, o mercado de transferências de jogadores, as infindáveis crises e denúncia de corrupção das equipes. O que se explica até mesmo pelo retorno dos campeonatos, que atenderam mais aos interesses dos empresários do que das torcidas ou dos atletas.

Se a bola real rola no estádio vazio, a política parece seguir a mesma inspiração no campo também vedado da presença real do cidadão no debate sobre os problemas que lhes dizem respeito. Assim como a imprensa esportiva naturaliza uma realidade virtual, os jornais e TVs tratam com a mesma falta de realidade os fatos de interesse da sociedade. Nos jornalões, o falso balé – quando muito – do espaço aberto aos dois lados. Nas telinhas, os mesmos comentaristas travestindo seu liberalismo atávico em isenção.

Jornais e TV´s criaram padrão de cobertura que elimina o povo e a pluralidade, sustentando concepção única de realidade

As coberturas criaram um padrão que elide a presença do povo e da pluralidade em nome de uma concepção única de realidade social e econômica. Assim, em relação à pandemia, por exemplo, os maiores responsáveis pela situação de calamidade são as pessoas sem máscara, que parecem fazer parte de uma brigada homicida e não de um grupo de trabalhadores jogados no front da insegurança por patrões preocupados com a “economia”.

O acompanhamento do desafio científico em torno de tratamento e vacina para a covid-19 traz também um inegável marcador ideológico: só os países capitalistas são capazes de fazer ciência no sentido nobre da palavra. A desconfiança com relação às vacinas da China, Rússia e Cuba fazem parte de um protocolo (para usar a expressão da moda) que atropela a realidade. A corrida que um dia foi espacial, hoje se concentra no interior de uma célula. Não é um acaso que o clima de Guerra Fria traga a Sputnik de volta.

O interesse da imprensa dita profissional, por sua vez, não é esclarecer com o iluminismo da ciência e da boa informação, mas prejulgar tendo como fundamento a certeza que alguns países mentem, censuram e ludibriam por natureza. Enquanto isso, as grandes corporações capitalistas são sempre citadas em suas parcerias com universidades inquestionáveis, para fazer sombra a seu histórico de lucros astronômicos acumulados ao longo do tempo, tendo as doenças (sobretudo as epidemias de países pobres) como seu campo de atuação privilegiado.

O limite do monstro não são suas aberrações, mas a negação dos valores neoliberais daqueles que o criaram

A vacina ainda nem existe e o governo brasileiro já parece abrir mão de sua necessidade absoluta. O presidente disse que não pode obrigar ninguém a se imunizar, mas pode forçar a mão para que médicos receitem medicamentos ineficazes. Há um contraste que responde pela lógica do estádio vazio (ou do “me engana que eu gosto”) e da cobertura espetacular da imprensa corporativa. Vacinar todo mundo é uma violência; deixar de defender um medicamento que acelere a volta ao trabalho é perder oportunidade de calçar o negacionismo.

Ou seja, as afirmações, mesmo no campo das informações científicas, são primeiro verificadas pelo padrão do conhecimento – e nesse caso Bolsonaro é um ignorante. Em seguida, são submetidas à lógica dos valores do individualismo – e o presidente se sai como um liberal, ainda que equivocado. Nesses casos, como em muitos outros, a torcida-cidadão não pode participar a não ser como objeto, vendo sua imagem ser projetada e suas vozes ecoadas por máquinas de manipulação.  

A partida do jornalismo e da ciência está se dando numa arena com nome do patrocinador sendo apregoado antes mesmo de o jogo começar. Mas o método vem se espalhando para outras áreas. Nos últimos dias, o aumento do preço do arroz foi a jogada da vez. De novo com o mesmo argumento, que responsabiliza o cidadão pela incompetência e má fé dos condutores oficiais da economia e da política agrária.

Não faltou nem mesmo o mais extremo ato de desonestidade moral, que se recusou a localizar no incentivo à exportação do produto (quando todos os países buscaram defender seu mercado interno) e mesmo ao fato de que as pessoas passaram a comprar mais alimento com a ajuda emergencial.

Para completar, fontes do governo desculparam até mesmo os produtores, que puderam lucrar um pouco mais depois de crises do passado. Ou seja, o preço do arroz é composto por desídia do governo, gula das pessoas e prêmio merecido ao agronegócio.

Mais uma vez, a imprensa transforma o jogo de interesses bem localizados em um debate sobre liberalismo e intervencionismo. Bolsonaro, na avaliação da imprensa empresarial, pode tudo: ser autoritário, fazer vista grossa para corrupção, destruir o meio ambiente, atacar os direitos humanos e até defender a ditadura. Tudo, menos regular preços.

O limite do monstro não são suas aberrações, mas a negação dos valores daqueles que o criaram.


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Edição: Elis Almeida