Minas Gerais

BRUMADINHO

Relatório da ONU afirma que a Vale teve “conduta criminosa imprudente” em Brumadinho

Para relator, “justiça ainda não foi feita” e os familiares convivem com um “intenso trauma” até hoje

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O relatório coloca o desastre na conta da permissividade geral do governo brasileiro. - Créditos da foto: Reprodução

Um relatório feito após a visita de uma comitiva do Conselho de Direitos Humanos da ONU ao Brasil que ouviu pessoas em Brumadinho, Mariana e na comunidade de Piquiá de Baixo, no Maranhão, afirma que a Vale teve uma “conduta criminosa imprudente” no caso do rompimento da barragem que matou 272 pessoas em janeiro de 2019, em Brumadinho.

Essa seria a real causa do rompimento da estrutura, e não a instabilidade causada pela liquefação, diz o texto, que também coloca o desastre na conta da permissividade geral do governo brasileiro.

Segundo o relator Baskut Tunkat, responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos, a “justiça ainda não foi feita” e os familiares convivem com um “intenso trauma” até hoje.

Para os representantes da ONU, é “espantoso” que uma segunda barragem tenha rompido menos de 4 anos após Mariana. O relatório lembra que a Vale pressionou auditores externos a falsamente certificar a “estabilidade” da barragem de Brumadinho e ignorou alertas sobre os riscos que as estruturas corriam nos dois casos, incluindo também a negligência de executivos da BHP em Mariana.

Todo o caso seria uma “farsa judicial”, afirma o relatório

“Após os desastres de Mariana e Brumadinho, nenhum executivo corporativo da Vale, BHP ou Samarco foi condenado por conduta criminosa, uma farsa de justiça sugerindo que alguns no Brasil estão de fato acima da lei”, denuncia o texto.

“A incapacidade de proporcionar uma solução eficaz às vítimas do desastre de Mariana é emblemática do que enfrenta aqueles que buscam justiça e remédio contra as indústrias extrativas”, reforçam.

Nessa matéria especial, eu mostrei como o lobby da Vale funciona desde o governo federal até o poder local, incluindo o financiamento de campanha para dezenas de deputados e senadores.

Licenciamento acelerado é questionado

Tunkat concluiu seu mandato em meados do ano e o informe foi apresentado pelo novo relator, Marcos Orellana. O relatório final questiona os licenciamentos acelerados concedidos no Brasil mesmo após grandes desastres.

“Em vez de reforçar os controles das indústrias extrativistas após o desastre de Mariana, o governo brasileiro inexplicavelmente acelerou o licenciamento e não conseguiu assegurar o monitoramento e supervisão adequados das operações”.

Logo após o rompimento em Brumadinho eu detalhei como a Vale influenciou diretamente na aprovação de leis e normas que a favoreceram em Minas Gerais. A matéria mostra o áudio de uma reunião com representantes da empresa dentro da Secretaria de Meio Ambiente de MG.

Responsáveis por fiscalizar e regular o setor, os servidores ouviram durante três horas as sugestões da mineradora, em clima amigável e sem questionar os riscos das mudanças na legislação.

A sugestão de representantes da Vale, de que o processo de licenciamento, que em alguns casos se dá em três etapas, “poderia se transformar em licenciamento único”, acabou sendo de fato acatado pelo governo.

Tentaram censurar a matéria na justiça. Pedido derrotado. O juiz afirmou que a matéria é “de cunho eminentemente investigativo e reveste-se de interesse público”.

Em outra reportagem, revelei como o governo de Minas Gerais favoreceu 25 projetos de alto risco da Vale, incluindo Brumadinho.

No Maranhão, comunidade sofre com problemas crônicos causado pela Vale

A comitiva da ONU também visitou comunidades afetadas pela mineração no Maranhão, caso que não tem a repercussão que deveria. Para os relatores, “a luta de mais de 300 famílias em Piquiá de Baixo é emblemática”.

Na década de 1970, uma indústria siderúrgica “invadiu uma comunidade pacífica sem seu consentimento, um exemplo flagrante de indústria operando por décadas sem o devido respeito pelos direitos humanos e intervenção limitada do Estado”, afirma o texto.

A Vale fornece minério de ferro e transporta produtos processados ​​aos portos para exportação, em meio à expansão do sistema de transporte mina-ferrovia-porto ao longo do corredor de exportação de Carajás. “De forma alarmante, as siderúrgicas de Açailândia operam sem licença há pelo menos oito anos, por não atenderem às exigências ambientais”, diz a ONU.

Estudos revelam vários casos de problemas de saúde, incluindo tosse, falta de ar e respiração ofegante e dores de cabeça. 65% dos membros da comunidade relataram problemas respiratórios, com outros sofrendo de doenças oftalmológicas e vários problemas de pele, agravados pela poluição, afirma o texto.

“Membros da comunidade foram queimados com a escória e resíduos do ferro-gusa, onde a área de resíduos não foi devidamente vedada e sem sinalização adequada de perigo e riscos associados ao contato com o ferro-gusa. Apesar da poluição inconfundivelmente perigosa, os dados fornecidos ao Governo pelas empresas não sugerem que esteja acima dos níveis aceitáveis. O Governo não investigou ou sancionou as empresas”, cobra a ONU.

Para o relator, “a Vale tem a responsabilidade de remediar os danos infligidos à comunidade, embora não seja proprietária das instalações de produção de aço. A situação das comunidades de Piquiá de Baixo é uma clara violação dos direitos à vida, saúde e informação”.

Responsabilização de culpados, Fundação Renova sem influência de mineradoras e reassentamento de comunidades, pede o relator

Entre as dezenas de recomendações feitas pelo relator especial, estão:

* Identificar e implementar as reformas necessárias para garantir que os executivos corporativos sejam sempre responsabilizados por crimes ambientais e ocupacionais, incluindo Vale, BHP Billiton, Samarco, Tuv Sud e outras empresas relacionadas por sua inércia que levou aos desastres de Brumadinho e Mariana;

* Reformar a estrutura de governança da Fundação Renova para substituir toda influência da Vale, BHP e Samarco por especialistas independentes e livres de conflitos;

* Assegurar, em coordenação com a Vale e demais empresas envolvidas, a disponibilização dos recursos necessários ao reassentamento da comunidade de Piquiá de Baixo, e a emissão formal de pedido de desculpas por parte do Governo, Vale e demais empresas.

O relator também recomenda que as empresas precisam “envolver-se em esforços para garantir o acesso à justiça, incluindo o cumprimento das disposições legislativas e judiciais relativas ao fornecimento de remediação”.

No caso específico das mineradoras, isso “inclui a necessidade de que a Samarco e a Fundação Renova facilitem a divulgação de informações pertinentes ao público sobre as atividades de pesquisa e seus impactos à saúde e ao meio ambiente e que a Vale e empresas coligadas cooperem com as autoridades judiciais nos processos de remediação do desastre de Brumadinho, bem como do caso Piquiá de Baixo”.

Exposição desproporcional a metais pesados

O relatório também destaca outros relatos e observações que obtiveram na visita ao Brasil, afirmando que “os povos indígenas e comunidades tradicionais dependentes do Rio Doce sofreram tremendamente com o rompimento da barragem de Mariana, perdendo acesso à água, produção agrícola e meios de subsistência. Da mesma forma, os residentes da aldeia Pataxó em Brumadinho condenaram a morte do seu rio, incluindo a destruição da pesca”.

A visita também originou a proposta de que o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprove a abertura de uma investigação internacional contra o Brasil pelo comportamento do estado brasileiro diante da crise ambiental e de direitos humanos

Para os representantes da ONU, “famílias de baixa renda, incluindo afro-brasileiros, sofreram exposição desproporcional à poeira e metais pesados na lama acumulada em Barra Longa após o rompimento da barragem de Mariana por agentes das empresas e da Fundação Renova”.

Essas comunidades relataram várias doenças respiratórias e outras, afirmam, ”agravando a desigualdade pré-existente e a injustiça ambiental”.

Vale diz que tem cooperado com as investigações

Procurada para comentar as afirmações do relatório, a Vale não se manifestou até a publicação dessa matéria. Atualização: em nota enviada após a publicação, a Vale afirma que:

“Desde o rompimento da barragem em Brumadinho, em janeiro de 2019, a Vale tem cooperado ativamente com as investigações conduzidas pelas autoridades competentes, pelos comitês internos independentes e pelas comissões parlamentares, apresentando todos os documentos e informações solicitados.

O rompimento da barragem B1 é objeto de várias ações judiciais e, dada sua complexidade, requer uma cuidadosa avaliação pericial, técnica e científica sobre as causas da ruptura antes que sejam apontadas responsabilidades. A Vale confia no trabalho diligente das instituições e do sistema judicial brasileiro.

A Vale permanece firme em seus propósitos de reparar integralmente os danos causados pelo rompimento da barragem e de garantir a segurança das pessoas e dos nossos ativos. A empresa já desembolsou com a reparação de Brumadinho e a descaracterização de barragens mais de R$ 11 bilhões. Desse valor, R$ 4,1 bilhões foram destinados ao pagamento de indenizações e do auxílio emergencial mensal.

No total, quase 8 mil pessoas já foram indenizadas. Além disso, a empresa tem em seu balanço provisões no valor de R$ 18,6 bilhões para a compensação, reparação e acordos referentes a Brumadinho e para a descaracterização de suas barragens..

A Vale informa que não possui nenhuma usina siderúrgica voltada à produção de ferro gusa em Açailândia. Os impactos gerados pela atividade das usinas instaladas em Piquiá são de responsabilidade direta das empresas guseiras. A Vale busca cumprir rigorosamente as normas ambientais, controles e monitoramentos em todas as suas operações.

Mesmo reconhecendo que o impacto gerado pela produção nas usinas de ferro gusa não tem relação direta com a Vale a empresa vem mantendo diálogo permanente com todos os públicos interessados na questão de Piquiá de Baixo e atuando por meio da Fundação Vale na questão, a fim de contribuir com uma solução conjunta sustentável, em favor da comunidade“.

Investigação internacional contra o Brasil

A visita também originou a proposta de que o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprove a abertura de uma investigação internacional contra o Brasil pelo comportamento do estado brasileiro diante da crise ambiental e de direitos humanos. Seria um caso inédito.

“Falta responsabilidade e reparações para as vítimas, onde em muitos casos ninguém é responsabilizado por crimes ambientais inquestionáveis, ataques e assassinatos”, afirma a ONU.
 

Maurício Angelo é jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, Direitos Humanos e crise climática. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).

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