O modelo econômico brasileiro, preconizado na Constituição brasileira, é plural. Contudo, as sucessivas ondas neoliberais promoveram bloqueios que têm inviabilizado as conquistas reconhecidas na Carta de 1988. Esta é posição do jurista Giovani Clark, professor de direito da UFMG e PUC Minas.
Desde 1995 existem bloqueios institucionais à Constituição econômica por omissões, por políticas econômicas neoliberais e por revogação do texto constitucional
Recentemente, com os professores Samuel do Nascimento e Leonardo Côrrea, ele lançou o livro “Constituição Econômica Bloqueada: impasses e alternativas”, pela editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFPI). Em entrevista ao Brasil de Fato MG, Giovani aborda os impasses da Constituição Econômica e de suas conquistas, defende que se rompa com o fetichismo pela lei e aponta a luta social como o âmbito onde os problemas da efetivação do direito podem ser superados.
Brasil de Fato MG - Qual é o papel do direito na organização do modelo econômico vigente em um país?
Giovani Clark – O papel do direito se encontra principalmente na legislação, que vai estabelecer o modelo produtivo. No nosso caso específico, o texto constitucional de 1988, a Constituição Econômica, sobretudo entre os artigos 170 e 192, define um modelo produtivo plural com os sistemas produtivos permitidos. Por exemplo, o sistema capitalista, o cooperativista, o associativista e outros. Tudo isso com as limitações e imposições que o próprio texto constitucional e a legislação infraconstitucional estabelecem.
Você poderia, então, explicar um pouco mais o que significa o modelo econômico ser plural? Além disso, quais são, atualmente, os obstáculos à efetivação desse modelo?
Significa que uma das assembleias nacionais constituintes mais democráticas, com homens e mulheres com várias linhas de pensamento ideológico, construíram um texto que estabelece a dignidade humana, o direito à vida, à propriedade, ao trabalho, ao lazer, como comandos para um modelo plural.
O sistema capitalista é o mais priorizado porque detém o maior poder econômico e político dos grandes conglomerados
Para que você possa, por exemplo, produzir no sistema capitalista, existem limitações como, por exemplo, a função social da propriedade, a perseguição do pleno emprego, de modo que a tecnologia não pode inviabilizar a empregabilidade humana, o fato de a livre concorrência não poder ser enxergada exclusivamente pela ótica do grande capital, mas que, para haver concorrência, é necessário que haja também uma série de normas protetivas e indutoras da pequena, média e microempresa.
Esses princípios, do ponto de vista de uma visão mais progressista da realidade, são muito avançados e democráticos. Mas eles têm viabilidade quando se chocam com os interesses das classes dominantes?
Aí, temos uma questão do embate político. O que temos percebido desde 1995 – e isso está presente em um capítulo específico do livro – é que existem bloqueios institucionais à Constituição econômica.
Esses bloqueios se dão de diversas formas, por omissões, por políticas econômicas neoliberais de austeridade ou mesmo por revogação do próprio texto constitucional, de forma que se inviabilize sua efetivação. Qualquer legislação requer um processo de efetivação, o que é possível por pressão de grupos sociais.
É estranho que se faça um raciocínio da administração pública, como se fosse a gestão de uma família ou uma empresa privada, que são totalmente diferentes
Nada sai em função da simples existência da norma. Eu digo isso porque nós temos certo fetichismo pela lei. A parte mais difícil é a efetivação. Por outro lado, como os movimentos encontram-se destroçados ou com muitas dificuldades em face da pandemia e de outras questões, então, aumentam as dificuldades de efetivação do modelo produtivo plural.
O sistema capitalista é o mais priorizado sobretudo porque detém o maior poder econômico e político dos grandes conglomerados.
No quarto capítulo do livro, fala-se em “neodesenvolvimentismo”. Na acepção com que é trabalhado esse conceito, qual seria a diferença para o desenvolvimentismo clássico?
Uma parte dos autores, guiada pelo grande economista Bresser Pereira, pensa o desenvolvimento nos marcos do século XXI. Então, ganha muita força uma preocupação, por exemplo, com a soberania nacional, com a questão da revolução tecnológica, com a criação de segmentos produtivos para um processo de exportação adequado, com o câmbio.
As políticas econômicas construídas pelo PT, numa sociedade de escravocrata e conservadora, foram tratadas como uma afronta por parcelas da sociedade, o que resultou no golpe
É uma leitura renovada do desenvolvimentismo brasileiro. Tivemos política desenvolvimentista com Vargas, JK e também no regime militar. Passamos a ter, então, debates sobre o modelo de crescimento modernizante conservador e atrelado ao capital internacional, ou seja, dependente. Na realidade, uma das grandes visões do neodesenvolvimentismo, na minha visão, é uma preocupação com a soberania nacional.
A nossa Constituição, que ficou conhecida como Cidadã, contempla alguns avanços no que tange aos direitos sociais. Por outro lado, desde 2016, ela tem sido mudada na direção de normas mais afins com o pensamento neoliberal. Um exemplo é a Emenda 95, que impôs um limite muito severo ao dito gasto primário da União. Essas mudanças inviabilizam os direitos reconhecidos na Constituição?
Eu iria até um pouco além. O que vemos nesses bloqueios, já iniciados nos anos 1990, com o chamado neoliberalismo de regulação, e depois com Temer, a partir de 2016, é que a Emenda 95 viola toda a estrutura do texto constitucional.
É estranho que se faça um raciocínio da administração pública, como se fosse a gestão de uma família ou uma empresa privada, que são totalmente diferentes. Negam-se os direitos que mais precisam dos investimentos e como um fator keynesiano, que replica uma série de benefícios para a sociedade, e toda a economia está sendo toda sugada pela lógica do superávit primário.
O livro pode ser obtido gratuitamente pela página da Fundação Brasileira de Direito Econômico
Com a pandemia, o Banco Central pode colocar cerca de R$ 1 trilhão para os bancos privados e comprar nas mãos deles os títulos que não sabemos de onde vieram e para onde vão. Mas o Estado acaba inviabilizando também o setor produtivo porque o mercado interno sofre de forma mais aguda o não investimento público e, logicamente, afeta a produção, a circulação, a empregabilidade e a geração de tributos, que é em grande parte em cima do consumo, trazendo uma mega retração econômica.
Um tema candente na conjuntura é a reforma administrativa proposta pelo governo Bolsonaro. No discurso do Ministério da Economia, essa reforma vem em nome de uma suposta promoção da eficiência no serviço público. Porém, movimentos argumentam que essa reforma pode suprimir conquistas importantes, como a estabilidade no serviço público. Qual o impacto dessa reforma na vida da população?
É ainda uma das propostas que se acumulam, uma trás da outra, e não sabemos o que, exatamente, vai ser aprovado. Em face da fragilidade dos movimentos sociais, a cada hora há uma diferente reforma e não conseguimos debater todas elas.
Temos que perceber que o discurso do governo sobre o tamanho do Estado não é novo, ele foi feito por Collor, por Fernando Henrique Cardoso. O Estado brasileiro, comparado com outros países, não é grande. Nossa estrutura de servidores públicos é pequena, seja comparada com a população ou com o número de trabalhadores ativos.
Além disso, dizem que a maioria dos servidores ganha salários altos, mas isto não é verdade. Boa parte dos servidores estão na saúde, na educação, áreas que não têm uma rentabilidade grande. Então, tomam o serviço público não pela maioria, mas pelos salários dos desembargadores, ministros, representantes do Legislativo, que destoam da maioria.
E o mais importante: os serviços públicos são fundamentais para a vida, para criarmos uma sociedade solidária, com atividades desvinculadas da perspectiva mercadológica, como o texto constitucional bem colocou. Uma nação com estruturas comunitárias, um presente e um futuro comuns. Quando se destrói o serviço público, fica difícil estruturar qualquer tipo de sociedade.
Você considera que em 2016 houve um golpe de Estado, a partir da derrubada de Dilma Rousseff?
Há uma disputa de narrativas aberta no Brasil. Nós entendemos que o impeachment de Dilma tem uma composição maior de elementos não jurídicos do que jurídicos. Então, podemos defender que foi um golpe político, parlamentar, econômico. Esse golpe tem um componente psicológico, houve toda uma preparação da população para isso.
As políticas econômicas construídas pelo PT, que estão muito aquém de uma proposta social-democrata, numa sociedade de visão ainda escravocrata e conservadora quanto à divisão de riquezas, foram tratadas como uma afronta por parcelas da sociedade.
Isto foi o combustível para o golpe, que tem muito a ver com os gastos públicos feitos com os mais pobres, como a Bolsa Família, o comportamento do Estado brasileiro no financiamento das ditas “empresas campeãs” e também na atuação da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, do BNDES, da indústria naval, na estruturação do processo produtivo capitalista. Os adversários desse projeto, muito articulados, deram um golpe, com o apoio do poder econômico e implementaram uma agenda econômica neoliberal, conservadora, sempre com muita dificuldade de reação popular.
Fale um pouco sobre o livro “A Constituição Bloqueada”.
Este livro reúne minha produção intelectual, do Samuel Pontes do Nascimento e do Leonardo Corrêa. Nós estudamos a Constituição de 1988, sobretudo a Constituição Econômica.
Nos artigos, trabalhamos temas como variedades de tempos do capitalismo. Isso aparece no primeiro capítulo, quando afirmamos que, além de não existir apenas um modelo de capitalismo, também podemos trabalhar outras formas de produção. O capitalismo tem uma concorrência não apenas externa, mas também interna.
Depois, trabalhamos a ideologia constitucionalmente adotada e as possibilidades de pluralismo produtivo. O terceiro capítulo aborda como as elites econômicas e políticas bloqueiam o texto constitucional para que ele não seja efetivado.
No quarto e último capítulo, trabalhamos as dificuldades de que o direito econômico enquanto disciplina se mantenha, pelas facetas do neoliberalismo: o neoliberalismo de regulamentação; o neoliberalismo de regulação, com privatizações e criação de agências reguladoras; depois, a faceta neodesenvolvimentista, que combina políticas econômicas conservadoras com políticas sociais avançadas; por último, o neoliberalismo de austeridade, representado pela EC 95.
O livro pode ser obtido gratuitamente pela página da Fundação Brasileira de Direito Econômico.
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Edição: Elis Almeida