Cinco anos após o rompimento da barragem de Fundão, pertencente à Samarco, Vale e BHP, atingidos seguem sem reparação. Essa é a avaliação de atingidos e figuras públicas das instituições de Justiça de toda a Bacia do Rio Doce.
“Absolutamente nenhum grupo, sejam eles agricultores, lavadeiras, artesãos, pescadores, pequenos comerciantes, foi integralmente indenizado. O ambiente também não foi recuperado. Os reassentamentos das vilas não aconteceram, casas trincadas não foram consertadas, o auxílio para pessoas que pararam de trabalhar foi suspenso em plena pandemia”, avaliou Silmara Cristina Goulart, coordenadora da Força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) para o caso do Rio Doce, em coletiva de imprensa na quinta-feira (29).
A Justiça deixa a desejar para os atingidos. As indenizações que têm vindo pela Justiça estão muito aquém da realidade
Esse é o sentimento da produtora rural Elaine Rodrigues, de Conselheiro Pena (MG), região do Vale do Rio Doce. Todo ano, as cheias do rio fazem a lama inundar a pastagem com metais pesados, matando o capim e causando perdas de gado e leite. Além disso, Elaine teve que gastar do próprio bolso para construir novas cercas e também para canalizar água para a criação.
"A Justiça deixa a desejar para os atingidos. As indenizações que têm vindo pela Justiça estão muito aquém da realidade. E quem não vai com advogado, nem vai ao juiz, não está sendo atendido. Além disso, se alguém pega a indenização, ela é total, não recebe lucro cessante, auxílio emergencial. Então, são só perdas para os atingidos", comenta.
Duas bacias, dois tratamentos
Embora o crime na Bacia do Rio Doce, em 2015, cubra uma área superior à do crime na Bacia do Paraopeba, em 2019, o tratamento da Justiça no primeiro caso é pior. Com cinco anos e 50 cidades em dois estados (Minas Gerais e Espírito Santo), menos de 20 mil pessoas receberam o auxílio financeiro emergencial e existem apenas três assessorias técnicas operando, de 23 necessárias, segundo o MPF.
Em Brumadinho, por outro lado, com menos de dois anos, cerca de 106 mil pessoas acessaram o benefício, há assessorias técnicas em campo até a região de Três Marias e as indenizações são maiores.
Diversos fatores explicam essa diferença, como a maior experiência das organizações populares na defesa dos atingidos e a comoção causada pelas 272 mortes em Brumadinho (em Mariana, foram 19).
Porém, as distintas conduções dos casos pelo Poder Judiciário jogaram um papel decisivo. “Nós tivemos, por parte do Poder Judiciário de Minas Gerais, em Brumadinho, uma condução muito mais firme e com muito mais garantias aos atingidos. Percebemos que o juiz Elton Puppo, preocupado com a sobrevivência das pessoas, conduziu uma negociação com maestria”, avalia o promotor André Sperling.
Parcialidade e conflitos de interesses
Na Bacia do Rio Doce, pelo contrário, atingidos, movimentos e profissionais do direito apontam que o Judiciário tem uma atuação francamente favorável à mineradora.
Os casos são conduzidos na 12ª Vara Federal de Belo Horizonte pelo juiz substituto Mário de Paula Franco Júnior. Segundo os movimentos, um dos problemas é o conflito de interesses. Por exemplo, a mesma empresa que faz perícias para o juiz já realizou estudos a serviço da Fundação Renova, uma organização controlada pelas mineradoras.
Absolutamente nenhum grupo, sejam eles agricultores, lavadeiras, artesãos, pescadores, pequenos comerciantes, foi integralmente indenizado
Em outra situação, uma liminar autorizou a Samarco a descontar os valores de auxílios emergenciais das indenizações finais que seriam pagas às vítimas. A decisão depois foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal (TRF-1). Em uma audiência em 2016, o juiz teria se referido às vítimas como oportunistas, interessadas em enriquecer com o caso.
Segundo o MAB, o magistrado também resiste a implementar as assessorias técnicas, um corpo de profissionais escolhido com aval dos atingidos, previsto em um acordo que as próprias empresas assinaram em 2016 (o TTAC Governança).
"Ele tem uma perseguição política com esse tema. Ora, as assessorias são quem tem estrutura para garantir que os atingidos de todas as categorias e situações, de todos os perfis, participem do processo", argumenta Thiago Alves, da coordenação do movimento.
Contudo, Thiago ressalta que o problema vai além da atuação de apenas um indivíduo e perpassa as instituições de Justiça e outros poderes. "Existe uma espécie de acordo entre a mineradora, o governo federal, o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça para garantir que as coisas sejam assim", denuncia.
O procurador Edilson Vitorelli avalia que a não contratação das assessorias dificulta a reparação.
“Nós estamos numa espécie de efeito dominó. Como as assessorias não foram contratadas, muitos programas não foram executados, muitas ações não foram feitas, as pessoas não foram devidamente atendidas e, consequentemente, muita coisa atrasou. Vencido o prazo, o Ministério Público fez uma petição dizendo que acabou o prazo e queríamos a retomada de uma ação de R$ 150 bilhões. Essa petição já foi feita há algumas semanas e, até agora, não foi decidida pelo juiz da 12ª Vara Federal em Belo Horizonte”, recorda.
Acordo pelo alto, sem participação
Em 2016, um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado entre a Samarco, a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, estabeleceu os programas e ações de reparação, que seriam executados pela Fundação Renova, uma entidade privada que se apresenta como figura neutra no processo, mas está sob controle das mineradoras.
"A Renova é um escudo que protege os CNPJs das mineradoras, do ponto de vista formal, administrativo, jurídico, mas também é um escudo de publicidade, que esconde as marcas. Então, é um instrumento poderoso porque, por meio dela, as mineradoras controlam um orçamento bilionário e a agenda financeira das cidades, sem a participação dos atingidos", aponta Thiago Alves.
A Renova é um escudo que protege os CNPJs das mineradoras, do ponto de vista formal, administrativo e jurídico
De acordo com advogados, os critérios para identificar quem são os atingidos e aferir perdas e direitos de cada família não tomam como base nenhuma matriz de danos construída pelas comunidades, mas a visão da própria Renova. Além disso, segundo a advogada Tchenna Maso, do MAB, o processo coletivo foi fragmentado.
“Nesse momento, estamos na individualização do conflito dentro do processo coletivo com a atuação de advogados privados, que vem sendo questionada pelas instituições de Justiça. O atingido deve necessariamente ter um advogado particular para ingressar no portal do advogado. Não é o portal do atingido. Isso tem gerado caos de informação, em cada lugar, muita fragmentação, conflitos abertos nas comunidades e um grande assédio de advogados", acrescenta.
Vitória permitida
De acordo com o MPF, no final de julho de 2020, o juiz da 12ª Vara estabeleceu 13 novos processos, desmembrados do processo principal, sendo que nove foram mantidos em segredo de Justiça.
“Se esses processos fossem coisa boa para os atingidos, não estariam sendo feitos de maneira oculta”, alerta Edilson Vitorelli. Nos outros três, o Ministério Público descobriu que foi fixada uma matriz de danos de comissões, com um critério aleatório, utilizando dados que não foram discutidos nos próprios processos.
Edilson explica que “Há uma decisão que define quantas lavadeiras vão receber, quantos areeiros vão receber, quantos pescadores vão receber e nós não sabemos de onde vêm esses números. Além disso, a representação é feita por uma advogada e alguns colegas de faculdade dessa mesma advogada, que não têm histórico de processos coletivos".
"Mas, curiosamente, esses advogados, mesmo enfrentando os maiores escritórios do Brasil, ganham esses processos porque eles obtêm uma matriz de danos que diz quantos atingidos têm que receber. Essa vitória combinada gerou uma matriz que é composta de números aleatórios e prejudiciais aos atingidos”, denuncia o procurador.
Política de atingidos
De acordo com o MAB, a reparação também é muito dificultada pela ausência de uma lei específica para os atingidos por barragens, tanto em âmbito estadual quanto federal. Essa lei deveria dizer com precisão quem é responsável pelo crime e quem é atingido, além de apontar mecanismos oficiais para pagar a reparação, como fundos públicos ou privados.
Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, tramita um projeto dessa natureza (PL 1200/2015), aprovado em primeiro turno. Na quarta-feira (28), a Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social aprovou parecer de 2º turno favorável ao projeto, que agora vai a Plenário para votação final. No âmbito federal, a Câmara aprovou no último ano o Projeto de Lei 2788/2019, que agora está parado no Senado.
“A legislação é fundamental até para que os movimentos contestem as decisões judiciais. Na ausência dessas leis, tudo fica na conjuntura política, se o juiz é de direita, se ele segue regras mínimas", aponta Thiago Alves, do MAB.
Ônus da prova e poder econômico
A produtora rural Elaine Rodrigues relata que, embora ela e o marido sejam proprietários e ambos estejam cadastrados como produtores rurais, a Renova não a reconheceu como atingida, mas apenas dependente do esposo. Ao longo da Bacia, há relatos de diferentes famílias que enfrentam dificuldades para serem consideradas atingidas pelo crime da Samarco.
A advogada Letícia Aleixo, que acompanha o caso em Mariana pela Cáritas Regional de Minas Gerais, defende a inversão do ônus da prova em favor das comunidades, isto é, que as pessoas não tenham que provar individualmente que foram atingidas.
"No direito do consumidor, a empresa é quem tem que provar que não há defeito no produto ou vício, já que o consumidor é hipossuficiente [a parte mais frágil do conflito]. Da mesma forma, nesse caso, como são danos decorrentes da cadeia produtiva, deveria ser aplicado esse princípio", argumenta.
Se esses processos fossem coisa boa para os atingidos, não estariam sendo feitos de maneira oculta
Tchenna Maso, advogada do MAB, concorda com a ideia da inversão do ônus da prova, mas ressalta que isso é insuficiente para garantir os direitos, já que o poder econômico das empresas faz com que as decisões lhes sejam favoráveis. "Há uma clara facilitação das provas que vêm das empresas", pondera.
O resultado é que os processos são cada vez mais morosos, gerando nos atingidos um sentimento de desesperança e descrença na Justiça. Muitas pessoas, então, acabam aceitando acordos não vantajosos para encerrar logo o caso.
“Olha, tudo o que se encaminha é favorável às empresas. A conduta é favorável às empresas porque, para resolver, atingido tem que abrir mão de muitas coisas. Talvez, essa morosidade seja para que as pessoas aceitem qualquer quantia que eles oferecem. Pessoas que não aceitaram indenização que eles propuseram até hoje não foram chamadas novamente”, conclui Elaine Rodrigues.
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Edição: Elis Almeida