De maneira simbólica, Bolsonaro perdeu, mas os bolsonaristas não
Tirar Bolsonaro do poder é tão importante e uma tarefa de tal relevância civilizatória que a eleição para presidente desta vez terá três turnos. O primeiro foi cumprido em 15 de novembro: o presidente foi derrotado em parte, mas não está morto. Seus candidatos diretos na maioria dos casos não se elegeram.
Mas o perfil conservador se manteve com grande parte dos prefeitos com raízes na direita (é só ver os partidos que puxam as listas de eleitos), mesmo com alguns sinais promissores de recuperação do campo progressista, ainda que de forma localizada.
Muitos candidatos, num esforço extremo de bajulação e mau gosto, registraram seus nomes eleitorais com o sobrenome do presidente. Os diversos bolsonaros foram quase todos derrotados – só um chegou a se eleger.
Extrema direita gosta de ser chamada de direita e a direita de centro
No entanto, o puxa-saquismo descobriu outras formas de homenagear o mito, antepondo ao nome eleitoral patentes militares e cargos na polícia, como carimbo de sua filiação de alma e arma. Desses, muitos foram eleitos. De maneira simbólica, Bolsonaro perdeu, mas os bolsonaristas não.
A derrota do presidente aponta alguns caminhos para 2022. O mais importante deles é que é preciso ir em frente desde já. De certa forma, foi o que fez os Estados Unidos para dar conta do monstro lá deles. No entanto, trata-se de outra realidade política, basicamente um bipartidarismo, que cobra aliança na indicação do nome do candidato, seguindo depois de forma mais coesa e menos conflituosa nas etapas seguintes.
No Brasil, o multipartidarismo mescla duas ordens de egos políticos a serem pacificados: um da sigla e outro pessoal. Isso quando algum político não se julga dono do partido ou o partido vampiriza a vida do candidato, mandando o infeliz para o sacrifício para marcar posição.
Além disso, por aqui a ordenação espacial dos partidos e políticos é meio capenga e viciada. A extrema direita gosta de ser chamada de direita e a direita de centro. Por isso é preciso ficar de olho nas possíveis manobras para vender, na feira das várias frentes anti-Bolsonaro armadas na praça eleitoral, candidatos reacionários como sendo racionais.
Moro
Nessa turma se alinham nomes que vão de Huck a Moro, passando por Dória, que se apresentam como representantes de uma geometria política sem lado, frente ou verso, espécie de anjos da ideologia da ética, do sucesso e do empreendedorismo.
O ex-juiz Sérgio Moro, por exemplo, foi até hoje protegido de ser condecorado como espécime clássico da extrema direita, ganhando o salvo-conduto neutralizador do combate à corrupção que julgava encarnar como missão. O fato de ter atuado para eleger o atual presidente com a condenação ilegítima do seu adversário e de ter servido de caução para seus delírios autoritários e violentos como ministro da Justiça, foi sumariamente deixado de lado
Houve renovação, mas com reforço dos partidos conservadores
Ao ser afastado do governo, tentou capitalizar um comportamento de lisura e isenção que, no entanto, foi traduzido pelo gado com o qual pastava na popularidade como traição. Mau juiz, o inquisidor de Maringá tem se mostrado péssimo político, debalde o esforço da mídia empresarial.
Queda de Bolsonaro
A queda de Jair Bolsonaro frente à urna eletrônica – que ele detesta como tudo que pode simbolizar a democracia – pode ter muitas explicações. Certo arrefecimento da onda de estupidez que varreu o país em 2018, mudança de comportamento do eleitor frente ao ódio irracional das redes, demonstração de incompetência no manejo da pandemia.
Soma-se a esse tripé as sucessivas manifestações de incapacidade gerencial, política e ética do governo, em áreas como a economia – que não se move apesar dos pitis de Paulo Guedes – meio ambiente e relações internacionais, que isolam o país no concerto das nações.
Cada vez mais a perspectiva de frente precisa fazer parte das discussões políticas
O governo perdeu ainda a condução política interna que, como se sabe, dá as cartas nas eleições municipais. Não conseguiu criar uma base confiável, se submeteu aos militares que nunca gostaram de políticos, perdeu o comando da agenda dos projetos mais caros ao presidente, que ricocheteiam nas comissões e nunca são votados.
Rodrigo Maia se fez de passível até alguns meses antes da eleição, para soltar os cachorros de forma destemida na reta final. Ele é mais um dos candidatos de direita que gosta de ser chamado de centro liberal e que joga com a lógica dos três turnos.
Quando se analisam os prefeitos eleitos e a composição das novas câmaras é preciso cuidado para não se render a comemoração de alguns resultados expressivos.
Renovação e continuidade
Houve renovação, mas com reforço dos partidos conservadores; os mandatos coletivos prosperaram; a diversidade está mais presente, mas longe da expressão que tem na sociedade. Há mais negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+ e lideranças jovens, mas ainda distantes da capacidade de mudar o jogo sem muita luta pela frente. Os partidos, ao que tudo indica, foram puxados pelo movimento da sociedade.
O segundo turno em Rio de Janeiro e São Paulo são bons exemplos de alguns dos impasses em que se meteu o momento político, ao mesmo tempo definidor da vida das cidades e que aponta para a sucessão presidencial daqui a dois anos.
No Rio, a dificuldade de construir uma candidatura consensual do campo progressista legou aos cariocas uma escolha cinza, sem contrastes de fundo e sem diversidade de programas de governo. A vitória sobre o projeto fundamentalista evangélico é o avanço possível, mas não chega a animar.
Em São Paulo, o pragmatismo que faltou no primeiro momento logo se estabeleceu rapidamente com o resultado do primeiro turno. A esquerda ganhou uma chance que quase desperdiçou com a insistência em bater chapa quando a realidade já cobrava a astúcia da unidade.
Mesmo o PT, que agora assume o papel de apoiador que talvez devesse ter oferecido de pronto, passa por uma situação que tem tudo para trazer mais realismo quando a ideia de frente se apresentar em 2022. Não há direito adquirido em política.
Cada vez mais a perspectiva de frente precisa fazer parte das discussões políticas. O que inclui vários processos: da autocrítica ao aprendizado, da humildade ao orgulho das conquistas históricas, do compartilhamento de projetos e de novos modelos de governo de coalizão, das lutas da identidade à pauta anticapitalista.
A frente pode ser uma estratégia incontornável para alcançar o poder e talvez seja o caminho a ser trilhado desde já. Mas seu resultado, na prática, não está garantido de antemão pela ventura da vitória, se não houver a firmeza de princípios inegociáveis.
É preciso ir em frente, mas para ir à esquerda.
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Edição: Elis Almeida