Maradona ajuda a entender porque o futebol pode ser considerado expressão cultural
A morte de Maradona traz de volta muitos dos vícios e da expressão de má fé da imprensa dita profissional, que fez dele um mito para melhor se anistiar em destruí-lo depois.
Nem o histórico de realizações esportivas, muito menos sua coragem em expressar ideias na contramão dos bem-pensantes, ou mesmo sua transparência em trazer a público seus problemas, nada disso foi capaz de alçar ao primeiro plano a integridade da existência de homem absolutamente incomum. O que o atacante defendeu em vida foi logo rifado no momento seguinte da morte.
Há vários modos de operar essa operação desconstrutiva e canalha. Quando um atleta apoia um político de direita é considerado conservador; quando é partidário do socialismo, é chamado de polêmico.
Pelo visto, não há polêmica em defender o autoritarismo, a violência e a destruição da cultura, mesmo que o esporte seja feito do exato avesso desses desvios daquilo que melhor define a humanidade em seus momentos de afirmação: a liberdade, a generosidade e a criação do belo.
A um gênio dentro do campo – e são muito poucos que merecem esse título que é abusado todos os dias – é garantida a quase imunidade em sua vida pessoal, a não ser no que alimenta a própria indústria da celebridade: o vazio, a ostentação, a arrogância.
Mas com Maradona o julgamento de seu talento foi sempre seguido do intento desabonador, seja dentro de campo, na vida pessoal ou nas escolhas políticas. Além de criticado em suas escolhas, só ele parecia carregar os problemas que fazem parte da vida de todos os mortais.
O que o atacante defendeu em vida foi logo rifado com sua morte
Altivo, nunca se deixou diminuir pelo olhar do outro, respondendo sempre às provocações e defendendo sua visão de mundo. O que lhe valeu mais um ataque orquestrado da mídia, não apenas esportiva. Entrou na categoria dos que são “amados e odiados”, com destaque, quase sempre, para os motivos de ódio, mesmo que a paixão popular cercasse todos os seus passos e passes.
Maradona só era polêmico na letra de forma. Na vida real do esporte, era uma unanimidade que precisava ser combatida.
Não é preciso relembrar os feitos do atleta e cidadão. Cada admirador do futebol ou observador da sociedade tem seu momento favorito nos dois universos. O que, no caso de Maradona, compunha um só sujeito.
Era definido, ao mesmo tempo, por suas jogadas e gols, por suas posições ideológicas francas em defesa do socialismo e dos governos populares na América Latina e por seu desassombro em enfrentar a cartolagem e a máfia das associações esportivas internacionais.
Há momentos de transcendência da arte (não se concebe chamar o futebol de manifestação estética superior sem sua participação). Fez o gol mais bonito de todas as copas, ganhou uma Copa do Mundo carregando toda a seleção de seu país, transformou um time menor em potência no continente europeu.
Maradona ajuda a entender porque o futebol pode ser considerado expressão cultural maior, e não apenas jogo e entretenimento.
Há ainda, em sua trajetória, os momentos de expressão de resistência na política. São, nos dois casos, do esporte e da participação da vida social, atitudes aparentemente em baixa. O esporte se tornou negócio e a política para os atletas se configura como a arte da alienação ou condescendência com o poder, quando não da validação dos expedientes mafiosos das federações e conglomerado de patrocinadores e exploradores da imagem.
Diego Maradona foi um combatente dessas derrotas constrangidas. Lutou pela arte e fez, ao seu modo, a arte da luta.
Não é um acaso que hoje o julguem “polêmico” e recordem sua doença pela dependência química ou seu apoio a políticos de esquerda como faces negativas da moeda de sua vida.
O outro lado, o do esporte, mesmo quando destacado pelo valor indiscutível, sempre carregava o pré-julgamento de sua existência, como a incitar a jogar novamente a moeda para cima para que se mudasse o mando de campo. Era preciso enquadrá-lo. A cobertura da imprensa corporativa sempre fez gol de mão contra ele.
De um jogador de futebol se espera que jogue bola e cale a boca. Comportamento que se espraia para todo tipo de esporte. Foi o que se viu recentemente com jogadora de vôlei Carol Solberg, punida por se manifestar contra o presidente brasileiro.
O conluio entre o poder econômico (o esporte é um dos maiores negócios do mundo) e o poder político de plantão é uma espécie de garantia, quase um passe livre para uso privado de recursos púbicos envolvidos no esporte. Sem esquecer o interesse dos grupos de mídia, que há anos dão as cartas nessa arena.
Há um quê de sutilmente criminoso nesse comportamento no terreno do esporte.
A mediação entre interesse público e os valores do mercado é feita por empresas, empresários de atletas, patrocinadores, federações, emissoras de comunicação e políticos (há partidos que se especializaram em comandar as instâncias esportivas no jogo do toma lá dá cá do fisiologismo brasileiro), que criam regras sempre a seu favor. O trabalho deles é vender proteção para permitir a fluidez dos negócios. Como as milícias.
Maradona soube escolher amigos. Considerava Fidel Castro um segundo pai. Foi o cubano que o acolheu e tratou quando muitas clínicas em seu país e em outras partes do mundo negaram cuidado. Há sempre perigo de insucesso no tratamento da dependência química, o que se torna comprometedor. Só os amigos correm risco.
Também teve a sabedoria de eleger seus adversários, utilizando de seu poder de vocalização e atenção para pautar temas de interesse público e denunciar processos antidemocráticos, como o golpe contra Dilma Rousseff e a prisão de Lula.
Em vida foi transformado em mito, com tudo que isso carrega de trabalhoso e falso. Habitar o sonho do outro é uma das tarefas mais inglórias e fatalmente direcionadas ao fracasso. O mito, como sempre, servia a quem lucrava com ele. Com o tempo, Maradona foi se tornando cada vez mais humano.
A morte o livrou da mitologia e trouxe a humanidade integral de volta. Invertendo o desígnio do destino dos heróis olímpicos, viveu como Deus para encerrar sua trajetória como homem.
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Edição: Elis Almeida