Dentre o campo de esquerda, ela foi a única vereadora reeleita para a Câmara de Belo Horizonte. Bella Gonçalves é integrante das Brigadas Populares e foi eleita vereadora pelo PSOL. Ela ocupa um cargo legislativo há dois anos, mas reafirma sua identidade como lutadora social. Afinal, “você nunca deixa de ser militante”.
Antes de ser eleita, Bella atuou nos movimentos pelo direito à cidade por 10 anos e construiu uma grande proximidade com as ocupações urbanas. Esteve quase desde o início na Ocupação Dandara e na Ocupação Isidora, duas referências de ocupações urbanas de BH. É cientista social e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Nessa entrevista, a vereadora faz uma análise sobre a nova Câmara de Vereadores de Belo Horizonte e relata a experiência do mandato coletivo da Gabinetona. Mulher casada com outra mulher, Bella afirma que é uma das vereadoras de oposição às pautas conservadoras neste legislativo.
Qual sua avaliação sobre a Câmara que foi eleita para Belo Horizonte?
A gente não teve uma alteração muito considerável na composição dos parlamentares, exceto pelo fato que agora temos mais pessoas que compõem um campo “ultraconservador” ou neoliberal. O Partido Novo ampliou para 3 as suas cadeiras, temos figuras bolsonaristas que continuam e outras que foram eleitas. Em resumo, ainda temos o cenário de uma Câmara extremamente conservadora.
A gente veio para ocupar e ocupar é confrontar
A esquerda não aumentou seu número de cadeiras, ela manteve as 5 cadeiras que já tinha. A diferença é que temos uma renovação política importante, com uma representatividade bem maior de mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+. Isso pode significar uma alteração na correlação de forças na Câmara sobretudo no que diz respeito às lutas de mulheres e contra o conservadorismo.
Pode falar um pouco mais sobre esse aumento do campo bolsonarista?
A gente tem mais pessoas que vem de uma pauta puramente ideológica. Antes, era uma câmara de vereadores extremamente conservadores - que aprovou em primeiro turno o Escola Sem Partido, promoveu censura nas artes -, e essa bancada continua. O que muda é a origem política dos vereadores.
Antes eram vereadores que vieram dos bairros, agora, alguns candidatos eleitos vêm do movimento bolsonarista das redes sociais. Mas não são muitos.
Temos mais pessoas do campo “ultraconservador” e neoliberal na Câmara
Por outro lado, alguns vereadores que tinham suas bases em igrejas, ultraconservadores, não foram eleitos. Por exemplo, alguns líderes da bancada autointitulada “cristã”, que foram derrotados nessas eleições.
Você ficou dois anos como vereadora neste último mandato. Inicialmente, você participava da gabinetona com a Áurea Carolina (PSOL) e Cida Falabella (PSOL), e quando a Áurea se elegeu deputada federal, você assumiu como vereadora. O que essa experiência legislativa mudou na sua visão e na sua prática política?
Foi de fato uma experiência muito nova ocupar o espaço do legislativo sendo eu, uma pessoa que tem uma trajetória de movimento social muito profunda.
A gente sente sempre uma inadequação de lugares, porque você nunca deixa de ser militante, nunca deixa de ser lutador social, mas agora você está ocupando um papel institucional, que tem seus limites, que você vai o tempo inteiro tensionando e confrontando. Às vezes, isso se volta contra nós em forma de perseguição política.
Desde que assumi como parlamentar, foram diversos enfrentamentos, envolvendo tanto parlamentares da casa e suas pautas conservadoras, até as próprias estruturas de repressão do Estado. Eu cheguei a ser detida duas vezes como vereadora e quase passei por uma cassação do meu mandato na Câmara durante a tramitação do Escola Sem Partido. Coisas que vão mostrando esses “limites” entre o lugar institucional e o lugar militante.
Mas é importante a gente sempre seguir rompendo e desafiando essa ideia de que o parlamentar é aquele que fica no gabinete, que se acomoda àquelas lógicas. Não. A gente veio para ocupar e ocupar é confrontar.
Quais são esses limites que você encontrou na Câmara?
Vamos começar pela experiência política da Gabinetona, que foi uma das experiências mais transformadoras que eu já vivi. Um mandato coletivo que abraçou uma diversidade muito grande de pautas políticas da cidade, onde aprendemos muito, todos nós, com as diferentes lutas que compunham aquele mesmo espaço e desejo de ocupação da política. Não como um ato de acomodação de interesses, mas de confrontação da lógica instituída: numa construção de baixo para cima, de fora pra dentro.
A Gabinetona trouxe uma diversidade de corpos gigantesca para dentro da Câmara. Vivemos perseguições no que se refere ao uso dos banheiros, ao trânsito de pessoas indígenas com suas vestimentas. O que nos levou inclusive a criar projetos de leis. Os limites começam pelo corpo, e avançam para as lógicas institucionais.
Os conservadores eram vereadores dos bairros, agora, bolsonaristas ideológicos das redes sociais
Nós somos compostos por movimentos sociais, e esses movimentos não se restringem à ação institucional, eles são marcados pela ação direta. Seja de ocupação de uma terra que não cumpre sua função social, ou a ocupação da Câmara quando os direitos não estão sendo garantidos, ou mesmo a ocupação da Prefeitura para abrir diálogo com o prefeito.
Então, aquela forma do político como mediador o tempo inteiro é tensionada pela lógica dos movimentos populares.
E que bom que é assim, e que bom que a gente tem mandatos que representam isso. A gente precisa de parlamentares que façam o seu trabalho combativo, dentro do regimento, sem agredir ninguém. Essa combatividade, se vem do lado do opressor, eles passam pano. Agora, se vem da gente – mulheres, LGBTs, negros e negras – aí a história é outra.
Como fica a Gabinetona neste próximo mandato? Ela continua?
Com a eleição de Iza Lourença (PSOL) e eu, estamos conversando sobre esse futuro. Se continuamos com o nome ou não... afinal, tudo que é engessado, perde sua potência. A gente tem que reinventar o tempo inteiro. Mas uma coisa a gente tem certeza: nosso fazer é coletivo e nós não vamos levantar paredes.
Devemos construir juntas e trazer também a Cida Falabella (PSOL), que teve uma votação extremamente expressiva e representa uma pauta fundamental na cidade, abraçada pela esquerda, que é a questão da cultura.
E quais são os planos para o seu próximo mandato?
Sobre pautas mais pessoais, a gente construiu nesses dois anos de mandato um trabalho muito forte em três questões. Uma questão foi a moradia em Belo Horizonte, que está em um cenário aterrador de desinvestimento, tanto na urbanização e regularização de vilas, favelas e ocupações, quanto na provisão habitacional.
Trabalhar para colocar em prática o Plano Diretor que aprovamos na última legislatura, colocar a função social da propriedade no centro e pensar políticas de moradia vai continuar sendo tônicas importantes do mandato.
Kalil foi uma gestão possível de dialogar, mas um pouco meia boca
Outra questão muito central é a ambiental. O desafio de pensar nossos rios, nossas águas e nossas terras, frente à especulação imobiliária e à atividade de mineração. A gente tem uma mineradora operando de maneira ilegal na Serra do Curral. Precisamos fazer frente a isso.
E a terceira é dar uma consequência potente à organização de mulheres na Câmara. Hoje, nós temos 11 parlamentares mulheres, que é bem significativo. Embora sejam de correntes partidárias diferentes, tem algo que pode nos conectar. A proteção da vida das mulheres é uma delas. Avançar nas políticas protetivas, considerando a sua diversidade (profissionais do sexo, mulheres lésbicas, mulheres trans), é mais um dos desafios.
O Kalil foi reeleito prefeito de BH com uma boa margem de votos. Qual avaliação você faz do primeiro mandato dele e o que você acha que vem pela frente?
Kalil não é o pior dos governos, se a gente for comparar com outras gestões no país afora. Por outro lado, não é uma gestão de origem popular, que está relacionada às demandas mais urgentes de quem mais precisa da cidade. Teve medidas acertadas em relação ao coronavírus? Teve. Bancou os setores negacionistas? Bancou. Teve inclusive uma votação muito expressiva porque fez isso.
Mas em outras áreas, como a situação da habitação e os atingidos pelas enchentes e deslizamentos de terra, em janeiro de 2020, quase não foi feito nada. As áreas estão jogadas às traças, sem conseguir nenhum tipo de reparação. E nisso vemos uma inversão de prioridades nos investimentos públicos.
Kalil foi uma gestão possível de dialogar, mas um pouco meia boca, pois não avançou nas questões mais estruturais da cidade (moradia, saneamento, proteção às mulheres em situação de violência, entre outras).
Sobre a nova gestão, eu acho que o Kalil ganhou fácil demais. A votação expressiva dá a ele uma certa força de quem não tem que se comprometer com ninguém. Só que muitas coisas estão por vir. A gente tem a reforma da previdência municipal, as pressões políticas da bancada conservadora. Eu acho que essa segunda gestão deve ser mais difícil para os setores populares do que foi a primeira.
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Edição: Elis Almeida