Governo federal assume o papel de anjo da morte
Duas cenas simultâneas marcaram os últimos dias e sintetizam, para o bem e para o mal, o dilema que constitui a humanidade. De um lado, a vitória da ciência em produzir em tempo recorde vacinas seguras e eficazes, com o início da vacinação em larga escala e a retomada da esperança. De outro, no Brasil, uma atitude ostensiva de escárnio, com a disputa sórdida de poder em torno da imunização.
Podemos dizer que a espécie humana avançou uma casa na história da civilização, mas que alguns homens se mostram capazes de destruir essa conquista.
Desde que a pandemia tomou conta do mundo, um esforço monumental tem sido feito em todas as áreas. No diagnóstico, no monitoramento de casos, na construção de parâmetros de tratamento, na entrega altruísta ao cuidado com o outro e, como nossa maior aposta, na pesquisa de um imunizante capaz de deter a doença. Em cada uma dessas etapas, homens e mulheres dedicaram o que tinham de melhor, mais empático e generoso. Entregaram seus engenhos, seu tempo e, muitos deles, a própria vida. Uma história de honra.
As instituições científicas, empresas e a esfera política também se envolveram de forma determinada para enfrentar o flagelo. Nem todas, no entanto, são tomadas pelos mesmos propósitos. O negacionismo, a irresponsabilidade, o desprezo à ciência, a ambição e a escalada dos interesses menores foram compondo outra narrativa nada invejável. Além de atacar o conhecimento, foram capazes de discriminar povos e populações, impondo padrões de preconceito de toda ordem, da ideologia ao descaso com as pessoas mais frágeis. Uma afirmação de vergonha.
A chegada da vacina é por isso um fato complexo e problemático. Seria de se esperar que, como se trata de uma vitória da humanidade, a estratégia de imunização devesse seguir indicações técnicas e humanistas, com a centralização de produção em escala mundial, definição de metas universais e planejamento que levasse em conta todas as pessoas, de todos os países.
Ninguém foi capaz de levar adiante essa bandeira e caímos na naturalização capitalista do poder econômico como fator definidor da primazia da vacinação, dividindo a espécie humana a partir de sua localização na concentração de riqueza e poder.
Zema adora não fazer. Ele não gosta de gente
Cada país cuidou de suas necessidades e planejamento. Alguns com voluntariosa ação para sair na frente, por vezes de forma atropelada, mas inegavelmente reconhecida por suas populações. Outros, como o Brasil, deixando passar oportunidades para comprar e produzir imunizantes, com inépcia na preparação necessária para esforço tão complexo e se aferrando a entraves de natureza burocrática, legalista e ideológica. Mais que vacinar a população, evitando dezenas de milhares de mortes, as autoridades preferem falar em prazos de registro e dificuldades logísticas.
De costas para a realidade, o ministro da saúde Eduardo Pazuello chegou a falar em “se houver demanda” da vacina. Uma afirmação que é um misto de má fé e maldade.
O governo federal não é apenas incompetente. Ele assume de forma assertiva o papel de anjo da morte. Tem atuado de forma determinada para que tudo dê errado, em todas as etapas. Não é improvável que a nova onda da pandemia atenda aos desejos de manutenção do auxílio financeiro aos mais pobres. Uma capitalização política do sofrimento.
Se mantiver o discurso de que o registro cartorial deve demorar 60 dias (por que não criar urgentemente uma força tarefa de cientistas ou rever protocolos em razão da urgência, em direção a um processo internacional compartilhado de certificação?), o governo Bolsonaro assume, pelos números de hoje, mais de 50 mil mortes evitáveis até o início da vacinação em massa.
Zema: retardatário convicto
Mas é preciso reconhecer que Bolsonaro não está sozinho. O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) saiu da reunião recente com o ministro da saúde afirmando um alinhamento torpe com a estratégia federal de adiar a vacinação no limite do prazo máximo definido pelo governo.
Agiu da mesma forma no atraso da abertura de leitos, no fechamento do hospital de campanha sem um único atendimento, na economia de testes e na obsessão pela retomada econômica. No escanteamento da Funed (que até a campanha para o governo ele sequer conhecia), que poderia ter contribuído no esforço nacional por medicamentos, testes e vacinas.
O governador mineiro exibe um gozo inacreditável, típico de comerciantes de caderneta, por protocolos cartoriais e conduziu a saúde pública estadual sem sensibilidade humana, ancorada apenas em diretrizes gerais afastadas da vida real. Zema adora não fazer, o mote por excelência de seu fastio pelas políticas públicas e pela ação do Estado, ao lado da voracidade em privatizar tudo. Foi eleito para isso. Por esse motivo se escuda em tudo que valida seu comportamento reticente e procrastinador. E mais: ele não gosta de gente.
Enquanto outros governantes, em estados e municípios, se movimentam para comprar vacinas e mesmo judicializar a questão para atender seus cidadãos, custe o que custar, o governador de Minas se esforça para dizer que está tudo pronto no estado e que, pasmem, só falta a vacina. Sua submissão a Bolsonaro parece dar a ele uma expectativa, como a dos alunos fracos, de que bajular o professor pode ser uma vantagem na hora da prova. Zema é um retardatário convicto.
O mundo não mudou para melhor com a pandemia, apenas deixou claro nossos limites para transcender ou afundar no pântano moral. O atual momento é um exemplo do melhor e do pior do nosso tempo. A inteligência, o amor ao próximo e a sensibilidade foram capazes de fazer frente a um adversário gigantesco. A covardia, o ódio e a ambição, que têm em Bolsonaro e seus acólitos sua mais infame expressão, ameaçam jogar por terra todos os esforços. Vivemos entre o orgulho e a desonra. Assim caminha a humanidade.
Edição: Elis Almeida