Minas Gerais

CHUVAS

BH e Meio Ambiente: os rios enterrados vivos

São 100 anos de desigualdade no uso da água na capital mineira

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rio tamponado bh
Proposta que prevê mudança real no trato dos rios e ribeirões da cidade adormece na Câmara de Vereadores de BH: seu vereador tem algo a dizer sobre isso? - Créditos da foto: BIMIG

Ainda é possível conversar com gente que já pescou um dia no Ribeirão Arrudas, ou nadou no Córrego da Serra. Tem quem guarde memórias das brincadeiras na beira do Ribeirão do Onça, ou do Córrego do Leitão. Há também as lembranças da cachoeira que caía onde hoje é o Palácio das Artes, no centro de Belo Horizonte. Parece um passado muito distante dos moradores e moradoras da capital, mas essas lembranças são testemunhas de um processo de degradação dos rios da cidade desde a época do seu planejamento. 

No sexto e último episódio da série “Belo Horizonte, Meio Ambiente e Eleições 2020””, nós, do Lei.A, trazemos uma reflexão sobre a canalização dos córregos da cidade, um fenômeno antigo que demorou a ganhar a atenção da população. 

Isso só aconteceu depois do agravamento das anuais e recorrentes enchentes ocorridas nos períodos de chuva. Os episódios de desastres e tristeza são esperados em todas as épocas chuvosas do ano em Belo Horizonte, e chegam para  relembrar os rios enterrados vivos que correm aprisionados em galerias de concreto e aço, com cobertura de asfalto, por debaixo das ruas e avenidas. 

Atualmente, de acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, há 700 quilômetros de córregos e ribeirões na capital mineira. Desses, 208 estão canalizados ou revestidos, sendo 165 em canal fechado e 43 em canal aberto. Do restante,  200 quilômetros estão em leito aberto na malha urbana e 300 localizados em áreas de preservação. Mas, como é que a cidade chegou a esse ponto? Essa discussão esteve na pauta das campanhas dos candidatos a prefeito? 

#conheça - Belo Horizonte das águas polêmicas

Um dos grandes fatores para o Curral Del Rei ser escolhido como território para a construção de Belo Horizonte foi a presença abundante de água no terreno. Na época, muitas casas do arraial contavam com suas próprias bicas, dentro do quintal, e os córregos corriam livres entre os moradores. 

Mas as águas também foram motivo de desentendimento já no planejamento da cidade, em 1894, quando a Comissão Construtora da Nova Capital  (CCNC) se instalou na região para pensar os caminhos possíveis para as obras. Os cursos de água deveriam servir primordialmente para o abastecimento da população e para o saneamento, seguindo a lógica higienista típica da época. 

Um dos pontos de divergência era o sistema de esgoto que seria adotado a partir das alternativas apresentadas por Aarão Reis, chefe da comissão. De um lado, o engenheiro Caetano de César de Campos defendia o sistema chamado “separador absoluto”, onde o esgoto e as águas pluviais correriam em canais fechados, de forma separada. Nesse caso, o esgoto tratado  ficaria em uma estação fora da área planejada, sendo que as águas da chuva seriam despejadas diretamente nos cursos de água. 

Do outro lado, o engenheiro Saturnino de Brito, funcionário subordinado a César de Campos, apostava em um modelo no qual as águas pluviais e o esgoto seguiriam por uma única galeria, até uma área destinada à purificação dos efluentes por meio da infiltração do solo. 

Apesar do Sistema Absoluto ser o mais caro e depender da construção de uma Estação de Tratamento de Esgoto para existir, ele foi escolhido como a opção oficial, de acordo com as necessidades de uma cidade progressista e moderna. No entanto, a primeira estação de esgoto da cidade só seria construída 105 anos depois.  

Mesmo diante das disputas internas sobre qual seria a melhor forma de dispor os rios da cidade, as primeiras plantas referentes à captação e canalização dos rios de Belo Horizonte ficaram prontas já em 1894. O projeto dizia respeito à captação das águas para a população belo-horizontina, e ainda não propunha a alteração do regime hídrico da região, mas já mostrava como os córregos foram desconsideradas na elaboração da planta, com exceção do Ribeirão Arrudas, que no mapa já se encontrava retificado e canalizado de acordo com a malha rígida da capital.

Documento da Comissão Construtora da Nova Capital mostra o Ribeirão Arrudas como único curso d´água considerado no projeto, enquanto o Córregos da Serra (1), Acaba Mundo (2) e Leitão (3) foram ignorados e postergados para as administrações futuras resolverem o problema da inserção de todas as correntes de água no tecido urbano.

Com o crescimento econômico do século de 1920, a população acabou expandindo e extrapolando os limites delimitados pela comissão construtora. Foi justamente nesta época que os córregos e rios da cidade começaram a ser canalizados e tamponados pelo poder público. O primeiro a sofrer grandes intervenções foi o simbólico Ribeirão Arrudas, sendo retificado, canalizado e revestido entre a Rua dos Guaicurus e a Avenida Tocantins, onde estavam localizadas as estações ferroviárias Central do Brasil e Oeste de Minas, regiões de alto fluxo de passageiros e mercadorias.

Logo depois foi a vez dos córregos Acaba Mundo e Leitão começarem a sofrer intervenções. O geógrafo e professor Alessandro Borsagli, autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, conta que cerca de dez anos depois do início dessas obras, o Córrego do Leitão já estava completamente adensado, com curso d´gua encerrado em canal superficial.

100 anos de desigualdade (no uso da água)

Em paralelo, a zona suburbana acabou tomando proporções maiores do que a zona urbana devido ao alto custo de vida na área planejada. Nos anos 1920, 70% da população já vivia em bairros fora dos limites da Avenida do Contorno, como Floresta, Lagoinha e Carlos Prates. 

As consequências disso foram percebidas rapidamente por uma cidade sem saneamento planejado: de um lado havia uma região com infraestrutura, áreas verdes e largas avenidas, mas esvaziado de gente,  de outro, um território rural povoado, mas sem atender aos serviços básicos dos cidadãos. Menos da metade das moradias tinham acesso ao serviço de abastecimento de água e menos de um terço da população possuía rede de esgoto – que durante muito tempo era lançado diretamente nas águas antes cristalinas do Ribeirão Arrudas, fora dos limites da zona planejada, sem tratamento algum. 


Canalização do Ribeirão Arrudas. Fonte: Notacao: BH.ALB.06-116. 

A enchente de 1930

Ao longo do tempo, as obras para dar lugar a ruas e avenidas se tornaram uma prioridade para a administração pública de Belo Horizonte, em uma tentativa de controlar as consequências de uma população que ocupava cada vez mais os espaços não planejados. A presença de carros aumentava consideravelmente, fazendo ainda mais necessária a existência de vias possíveis para o trânsito deles. E assim justificaram-se os cortes de árvores e a substituição das antigas canalizações abertas e sua arquitetura característica por canais fechados com maior capacidade de escoamento. 

“A justificativa das canalizações eram sempre as enchentes. Mas aconteceu uma chuva avassaladora em 1930, fazendo os cursos d´água que não apresentavam problemas saírem do leito e arrasarem os fundos de vale”, relembra Borsagli. O episódio reafirmava que havia alguma coisa errada.

Borsagli  ressalta a insistência na canalização dos córregos  mesmo após diversos indícios de problemas, se tornando um tipo de “técnica única” no que dizia respeito a gestão das águas da capital mineira. Ele relembra um detalhe importante:  Belo Horizonte era uma repartição do Estado, sustentada por uma espécie de mesada do governo.  

“Até 1947, o Estado que escolhia o prefeito, por exemplo. E é importante lembrar como as canalizações já eram lucrativas. Cada intervenção de três, quatro quilômetros dava ao município um retorno de 600% desse valor. A canalização do córrego do Leitão, por exemplo, deu um retorno ainda maior, de quase 900 %. Era muito dinheiro para um município em uma situação econômica delicada”, analisa. 

Para o pesquisador, o fato da técnica ser tão lucrativa justifica porque ela é  usada até os dias atuais. 

Mais progresso, menos águas à vista 

O crescimento da cidade pediu mais vias para trânsito, além de demandar a ampliação do saneamento básico da população. As obras de pavimentação se intensificaram na época da gestão de Juscelino Kubitschek, entre 1940 e 1946.  O “prefeito furacão” estava disposto a fazer da capital mineira o símbolo do progresso. 

Enquanto esteve à frente da administração municipal, ele deu seguimento a projetos de canalização já planejados por gestões passadas. Foi nesse período que a Avenida do Contorno foi construída, a Avenida Afonso Pena foi finalizada e outras, como a antiga Pedro II e Tereza Cristina, foram erguidas em cima dos córregos do Pastinho e Ferrugem, respectivamente. Também foram tempos de  canalização em diversos pontos do ribeirão Arrudas, já extremamente agredido pela poluição vinda do esgoto sem o devido tratamento. 

Com a chegada da indústria automobilística no Brasil, na década de 1960, a situação dos rios se agravou ainda mais. Luciana Bragança, arquiteta e pesquisadora do Grupo Indisciplinar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comenta a pressão pela reforma urbana das cidades existentes, nessa época. 

“Era um planejamento rodoviarista que fazia os rios baterem de frente com o progresso, porque para o desenvolvimento, eles teoricamente deveriam sair de cena, ficarem escondidos sem atrapalhar a passagem dos carros”, pontua. 

Seguindo esse pensamento, os córregos já canalizados começaram a ser revestidos e cobertos, e outros – que cortavam as zonas urbana e suburbana da cidade – foram revestidos e retificados e canalizados em sua maioria. 

Essa mentalidade teve continuidade por décadas a fio, e um dos grandes exemplos foi a criação do Boulevard Arrudas, em 2007, fruto da canalização e do tamponamento do principal ribeirão da capital.

Créditos da foto: Lucas Prates


 

As consequências dessa série de atravessamentos e intervenções profundas nos rios da cidade são  graves, de acordo com Borsagli. “Temos perda de qualidade no meio urbano e temos uma série de transbordamentos quando se tira o curso d´água do seu leito natural, encerrando ele em um canal artificial. Ao mesmo tempo, vemos a impermeabilização das bacias acontecendo, e quando se impermeabiliza as várzeas, todo o regime hídrico é alterado. A água da chuva deve ficar onde ela cai. Se existe concreto, ela não tem para onde fluir e busca escorrer para algum lugar. Para onde ela vai? Para os fundos de vale. O canal não dá conta de transpor essa água toda e daí vêm os alagamentos”, explica. 

Fonte: Água, sua linda.

#monitore - O desastre pressionando mudanças 

Depois de Belo Horizonte registrar o maior número de mortes causadas pela forte chuva do início de 2020, com 13 vítimas fatais, as políticas urbanas que sufocam os rios da cidade chamaram a atenção da população com mais veemência.

Em busca de soluções possíveis para a questão dos rios enterrados da cidade, o novo Plano Diretor entrou em vigor com um ponto de extrema importância para os moradores e para o meio ambiente: a proibição das canalizações dos córregos da capital. 

Mesmo com o respaldo do Plano Diretor, Borsagli chama a atenção para a necessidade de uma estratégia mais concreta de recuperação dos rios. “Muito além de não canalizar, precisamos procurar formas de resgatar essas águas, buscando uma reinserção delas com o meio urbano, para a cidade conviver de forma harmoniosa com eles. Ainda é possível, mas leva tempo. Não é algo para se fazer em quatro anos, nem em oito. É um processo que envolve diversas questões, como saneamento básico e ocupação urbana.  E tem muita gente que acha ser utópico, devido ao impacto no  trânsito, mas se houver planejamento e vontade, é possível”, diz. 

Proposta para “ressuscitar” os rios de BH 

Pensando nesse planejamento, em  fevereiro deste ano mais de vinte organizações envolvidas com a defesa dos direitos socioambientais elaboraram um documento com propostas de ressignificação dos rios de Belo Horizonte e entregaram à Câmara Municipal.  Entre as alternativas sugeridas,  está a elaboração de um plano de descanalização dos cursos d’água da cidade, para que, até 2040, os rios de Belo Horizonte corram em leito natural ou semi-natural. Um dos objetivos das entidades participantes é que recursos públicos destinados às obras de reparação das enchentes fossem aplicados em políticas consequentes de longo prazo.  

Confira o documento na íntegra 

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