Falta tudo, e o que mais falta é amor. Ou socialismo
As crises sanitária, econômica e política, no Brasil e no mundo, têm uma repercussão poderosa no campo espiritual, no sentido mais amplo da palavra. Não estamos vivendo apenas uma época de incompetência, desigualdade e autoritarismo, mas uma crise de alma. Se um dia chegamos a pensar que o homem vinha melhorando, mesmo a passos curtos, parece que a pandemia fez o jogo voltar algumas casas.
Há não muitos anos, o químico holandês Paul Crutzen, ganhador do Nobel de 1995 por seus estudos sobre a camada de ozônio, propôs o conceito de antropoceno para marcar uma transformação planetária de impacto em todos os sentidos. A presença do homem na Terra havia consumado uma nova ordem, que se mostrava em todas as direções e nas mais diferentes situações. A mudança estava encravada na biologia, na física, na química e até nas rochas. O que dirá nos corações.
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O que o cientista apontava, e que hoje parece ser um consenso, é que a ação humana sobre o planeta havia atingido um patamar muito maior do que o da própria natureza ao longo das eras anteriores. Em sua capacidade de intervir sobre o mundo, o saldo não se mostrava muito promissor: aquecimento global, destruição do meio ambiente, extinção de espécies, contaminação dos elementos, derretimento de geleiras, mudança na composição dos gases da atmosfera. São mudanças profundas, que se contam na escala de milhões de anos.
Somos, ao mesmo tempo, o encerramento de uma era e a abertura de outra.
Para não ficar apenas no pessimismo, o antropoceno carregava com ele algumas possibilidades inéditas e benfazejas. Pela primeira vez, a ação de um ser vivo tinha tudo para dialogar com os ritmos da natureza, conhecer os mecanismos de funcionamento da vida e colaborar para ampliar as melhores possibilidades de existência sob o sol. O que a degeneração da ciência em técnica havia promovido, o homem teria como recuperar em termos de uma ação mais consciente e integrada a uma temporalidade que ia além do uso egoísta e destrutivo dos elementos dados ao seu engenho e uso.
Somos, ao mesmo tempo, o encerramento de uma era e a abertura de outra
Se há uma transformação no mundo da matéria, seria de se esperar uma mudança também no âmbito do espírito. Ou seja, assim como o mundo natural apresenta cenários de destruição e expectativas de sobrevivência, o mundo interior também se divide. De um lado, o universo do egoísmo, do uso indiscriminado e destrutivo das ofertas da natureza, da competição que divide as pessoas. De outro, uma consciência da responsabilidade humana sobre os destinos do planeta, da necessidade de um pensamento global e solidário, do desenvolvimento de novas formas de convivência com o planeta e com as outras pessoas.
Uma ecologia da matéria, uma ecologia do espírito
O antropoceno indica que entramos numa era com a qual deixamos de ser objetos, para um período em que passamos a ser sujeitos. O resultado pode ser o crescimento ou a destruição, a igualdade entre as pessoas ou a guerra permanente, o uso racional dos meios ou a pilhagem. O egoísmo ou a solidariedade. A força da contenção que preserva ou a fraqueza do consumo que aniquila o futuro com a escassez anunciada.
A pandemia do coronavírus é um ponto de virada nessa história. Cruzam à nossa frente sinais de acertos e erros continuados nos dois campos, da matéria física e dos valores intangíveis. Um sentimento de desvio de rota nos entregou uma doença que é fruto do desrespeito com os limites da natureza. Uma sensação de vitória congregou a inteligência humana a desenvolver uma proteção eficiente para todas as pessoas. Há o impulso para o domínio além da conta. Mas existe a sabedoria que veio para mitigar essa ambição mortal.
No entanto, quando se transfere esse jogo para o mundo das relações sociais, é possível identificar os mesmos movimentos de avanço e retrocesso. Aprendemos a pensar coletivamente, desenvolvemos políticas fundamentadas no bem geral e na defesa da vida de todos, organizamos entidades multilaterais inspiradas por motivos éticos e igualitários. No entanto, acompanhamos a escalada de ações que enfraquecem os fracos, que acumulam privilégios, que furam fila da moralidade em nome dos interesses dos mais fortes.
Para os países ricos, a moral e a técnica; para os pobres, os negócios e a caridade
A vacinação, que hoje se tornou a principal ação mundial, tinha tudo para ser a prova de nossa evolução como humanidade. O que a história nos mostrou não tem servido de nada. Países ricos compram mais vacinas do que precisam. A riqueza da economia não parece ter relação com a necessidade de investimento na fabricação de mais imunizantes. Dados de organizações econômicas mostram que, durante a pandemia, os ricos ganharam acima do normal mais do que o necessário para produzir vacinas para toda a população mundial.
Há um lucro indecente que se tornou acumulação suntuária e discriminadora. A pandemia se tornou um bom negócio. O esforço da economia global (que se reproduz internamente nos negócios locais) tem sido manter a máquina funcionando. O limite que vem sendo perseguido é o de garantir vivos suficientemente capazes de consumo para fazer a roda girar.
Não há uma defesa da vida – até mesmo para se pensar na sustentabilidade do ambiente econômico –, mas uma exacerbação dos ganhos imediatos. A consideração da economia como uma disciplina ética empurraria o debate para a distribuição de renda, para a criação de mecanismos de auxílio, para a instauração de uma provisão mínima universal.
Quem esperava um antropoceno positivo se deparou com seu correlato apocalíptico. Não há uma liderança mundial capaz de pensar a imunização como um processo global. Furou-se a fila das necessidades entre os países e, dessa forma, alimenta-se a permanência da pandemia com o isolamento de nações que passarão a ser consideradas párias sanitários para permitir que os bares e o turismo sejam abertos nos países mais ricos.
Quem reclama da falta de ética dos que passam à frente dos candidatos mais urgentes à vacina em sua comunidade, não se espanta com o fato de que países pobres fiquem para trás. Para os países ricos, a moral e a técnica; para os pobres, os negócios e a caridade.
Não há como se desviar dos imperativos do nosso momento histórico no Brasil. Vacina já, para todos; Fora, Bolsonaro; e renda mínima de cidadania. Mas não deixa de ser triste ter que aceitar que os outros imperativos, como a solidariedade e a fraternidade fiquem para trás.
Precisamos da ecologia do mundo exterior, na forma de mais ciência, mais democracia e mais distribuição de renda. Mas estamos carentes da ecologia do mundo interior. Falta tudo, e o que mais falta é amor. Ou socialismo. O que, nesse momento do nosso antropoceno manco, talvez seja a mesma coisa.
Edição: Elis Almeida