Dois anos se passaram desde o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, que causou 272 mortes e inúmeros danos, como a contaminação da Bacia do Rio Paraopeba, desabastecimento de água em dezenas de comunidades, destruição de empreendimentos e prejuízos financeiros a milhares de pessoas.
Todavia, uma das feridas mais dolorosas e menos comentadas é o adoecimento mental dos moradores. Só no primeiro ano, segundo levantamento da Prefeitura de Brumadinho, o consumo de antidepressivos na cidade cresceu 56% e o de ansiolíticos 79%. No atendimento à população atingida, profissionais da saúde identificam a multiplicação de casos de transtorno, ansiedade, perda de sono, alteração nos hábitos alimentares e conflitos familiares.
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"Temos recebido muitas queixas, falas, histórias que relatam danos significativos. E, quando pensamos na saúde mental, pensamos em algo integral, ligado à vida como um todo", afirma a psicóloga Vanessa Rodrigues Cardoso, da equipe de saúde e assistência social do Instituto Guaicuy, entidade que presta assessoria a comunidades da Bacia do Paraopeba e represa de Três Marias.
Outra entidade que assessora os atingidos, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), contratou uma consultoria especializada, que realizará estudo sobre os danos à saúde coletiva das comunidades, nos municípios de Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Betim, Igarapé e Juatuba. A análise será feita com base em informações do Data SUS e na escuta dos moradores. O resultado deve sair ainda no primeiro semestre.
"A Vale vai acabar matando a gente"
Maria Aparecida da Silva é agricultora e moradora do povoado de Tejuco, em Brumadinho, local que foi atingido pelo rejeito. Quando a barragem rompeu, no dia 25 de janeiro de 2019, ela conversava por telefone com o irmão, que estava no sítio onde morava e trabalhava. A lama alcançou a residência e matou o homem, de apenas 42 anos.
"Quando soubemos, fomos correndo para o local, a pé, e gastamos quase duas horas para chegar lá. Eu gritava por ele. Mais tarde, começou a escurecer, não dava para ver o que tinha acontecido. Aí, eu falei: 'desta vez, ele foi embora'", lembra a mulher, aos prantos. Era o início de uma tragédia que ainda não terminou.
Desastre atingiu em cheio a sobrevivência física e material
Aparecida e familiares passaram 15 dias procurando o parente na lama. Durante todo esse tempo e por mais algumas semanas, diariamente, ela via os helicópteros sobrevoarem sua casa transportando corpos de vítimas. "Pode ser ele", repetia. Passados dois meses, o irmão foi localizado, no mesmo fim de semana em que outro irmão faleceu. "Enterramos os dois juntos".
O desastre também atingiu em cheio a sobrevivência física e material. Aparecida, que tirava uma renda de aproximadamente R$ 4 mil por mês vendendo o que plantava, recebeu da Vale uma quantia de R$ 50 mil. "Não dá um ano do que eu ganhava trabalhando".
Em março de 2019, menos de dois meses após o rompimento da barragem, o filho dela, que tinha apenas 11 anos, tentou suicídio. Hoje, a mãe e o menino fazem tratamento psiquiátrico e tomam medicamentos controlados. "Tem dia que eu fico insistindo para ele tomar o remédio e ele fala: 'A Vale vai matar a gente de qualquer jeito. Uma hora, ela vai acabar matando'".
Uma família: três tentativas de suicídio
A 26 km do Tejuco, em São Joaquim de Bicas, vive a produtora rural Dinalva Barbosa no Residencial Fhemig, uma comunidade que dependia do Rio Paraopeba para a agricultura, criação de animais, pesca e recreação. O rejeito da Vale contaminou o rio, prejudicou o fornecimento de água, fez a renda das famílias cair drasticamente e inviabilizou o principal espaço de lazer e encontro dos mais jovens, o próprio rio.
Estamos perdendo nossos sonhos, nossas conquistas
Nos últimos dois anos, Dinalva vivenciou três tentativas de suicídio na família: da irmã, do genro e do filho. "A minha irmã tentou suicídio porque uma funcionária da Vale veio até aqui, passou perto dela e falou que ela era rica. Ela começou a chorar, ficou muito chateada com aquilo. Passou um tempo, tentou se matar, tomou vários medicamentos", recorda.
Os problemas, segundo ela, giram em torno da falta de água. "Nós estamos num lugar onde o rio Paraopeba passa em volta das nossas casas. Estamos perdendo tudo o que conseguimos antes, nossos sonhos, nossas conquistas. A Vale simplesmente chegou e tirou", lamenta.
"Nexo causal"?
As negativas da empresa deixam moradores indignados. "Ela fala que já foi justa, que já pagou. Isso dá uma revolta tão grande! A gente não pediu, foi eles que fizeram a besteira deles lá, eles que mataram as pessoas e deixaram todo mundo doente. E ainda ficam falando que o pessoal está correndo atrás de dinheiro!", conta Maria Aparecida da Silva.
De acordo com atingidos, a mineradora não tem assumido sua responsabilidade nesses dramas. "Ela [a Vale] responde que tem que ver se teve 'nexo causal'. Ela simplesmente não acredita", reclama Dinalva Barbosa.
De imediato, urgente é o investimento na saúde pública
Profissionais das assessorias técnicas sustentam que cobrar uma relação de simples causa e consequência nas situações de sofrimento mental é reduzir, simplificar ou mesmo ignorar um problema muito complexo. "Sempre há uma rede de perda de direitos que a pessoa sofre e que a adoece em vários aspectos, a deixa empobrecida, enfraquece seus vínculos com outras pessoas", argumenta Marjorie Fonseca, psicóloga da Aedas.
Para o psicólogo Rodrigo Chaves Nogueira, a exigência de "nexo causal" tornou-se uma saída para a mineradora eximir de suas responsabilidades. "A empresa comete um crime, provoca uma tragédia e sentimentos de abandono e desamparo. E ainda cabe à população provar que foi afetada! Ora, é direito da população receber as reparações financeiras".
Comportamento da empresa nas comunidades é fator de adoecimento
Problemas com abastecimento de água, diminuição da renda, possível fim do auxílio emergencial, luto pela perda de entes queridos, falta de garantias acerca das indenizações e outras medidas reparatórias, assédio de funcionários da empresa. Tudo isso compõe um cenário nada propício ao bem-estar e à saúde mental de quem viu seu próprio território ser drasticamente alterado da noite para o dia.
Tentando responder a essa situação, as assessorias técnicas acompanham os casos e produzem pareceres que são encaminhados às instituições de Justiça, a fim de que estas atuem junto à mineradora. O retorno da empresa, a despeito de todo o trabalho realizado, não é nada animador. "Em nenhuma das situações que acompanhamos houve resposta satisfatória da Vale", aponta Lígia Nonato, coordenadora de mobilização na Aedas.
A psicóloga Vanessa Rodrigues avalia que o comportamento da empresa nas comunidades também é um fator de adoecimento. "A própria questão dos auxílios emergenciais, alguns recebem, outros não recebem, a maneira como isso é feio também causa muitas dúvidas, questionamentos, conflitos", exemplifica.
SUS é fundamental
Marjorie Fonseca considera que a qualidade de vida dos atingidos só vai ser restabelecida com a reparação integral, mas ressalta que, desde já, é fundamental o fortalecimento do Sistema Único de Saúde para acolher a população atingida. "De imediato, urgente é o investimento na saúde pública", assinala.
Um dos instrumentos por meio dos quais o SUS tem chegado é o trabalho dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
"Somos um serviço de portas abertas, que recebemos quem necessite de cuidados em saúde mental, especialmente os casos mais agudos. Atendemos também nos territórios, fazemos visitas domiciliares. E, neste momento de situação mais dramática, após o crime em Brumadinho, nosso trabalho também ficou muito voltado para essa população", comenta Rodrigo Chaves, que trabalha como referência técnica da saúde mental em Brumadinho.
Em nenhuma das situações que acompanhamos houve resposta satisfatória da Vale
O acesso ao serviço do Caps se dá com encaminhamento profissional ou por demanda espontânea. "Durante todo o período de funcionamento, tem uma equipe que fica de plantão, que vai acolher, fazer o acompanhamento e uma proposta de cuidado. Nós temos atividades coletivas, oficinas, atividades de reintegração social. Quando o caso é mais grave e o paciente necessita de cuidados mais intensivos, o paciente passa com a gente", explica o psicólogo.
Outro lado
A reportagem fez contato com a Vale, mas, até o fechamento da matéria, ainda não recebeu resposta.
Edição: Elis Almeida