O governo Bolsonaro tem entre suas prioridades para o primeiro semestre a aprovação da agenda econômica da reforma administrativa, que contém a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32 e outras matérias que alteram profundamente a organização do Estado brasileiro e as vidas dos servidores, como a PEC 186 (Emergencial) e a PEC 187 (dos Fundos Públicos).
Alinhado com o governo, o candidato à presidência da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), defende até mesmo que a PEC 32 seja votada no primeiro trimestre de 2021. Seu principal adversário, o deputado Baleia Rossi (MDB), não só apoia as mesmas mudanças, como tem cobrado empenho governamental. “Acho que a Câmara precisa de uma reforma administrativa para que tenha mais recursos nas atividades fins", acrescentou o parlamentar, na última quinta-feira (28).
Dado que, no segundo semestre de 2020, essas pautas não avançaram no Congresso, agora, intensificam-se as pressões para que a reforma saia o quanto antes do papel. A agenda é por demais impopular, pois ataca a estabilidade dos servidores futuros e dos atuais, permite a redução de salários e retira outros direitos importantes.
Outras reformas, como a trabalhista, a previdenciária e o teto dos gastos não produziram os resultados apregoados
Por isso, governo, representantes do mercado financeiro e a mídia empresarial lançam mão de velhos argumentos para convencer a população. Em regra, apenas um dos lados é ouvido: o dos economistas favoráveis ao desmonte do Estado, à reversão das conquistas da Constituição de 1988 e à desregulamentação da economia.
Examinadas, porém, cuidadosamente, as ideias defendidas por eles estão longe de serem consensuais no debate econômico. Além do mais, trata-se dos mesmos argumentos utilizados nos últimos anos para aprovar outras reformas, como a trabalhista, a previdenciária e a instituição do teto dos gastos. No fim das contas, as alterações não produziram os resultados apregoados.
A fim de questionar tais argumentos, que cabe identificar como mitos, ouvimos o economista Thiago Rodarte, assessor do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconomicos (DIEESE).
Mito 1: "combater privilégios"
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem dito que a reforma não vai retirar direitos, mas combater regalias e salários elevados. Chama a atenção, todavia, que grupos realmente privilegiados do Estado brasileiro, como ocupantes de altos cargos das Forças Armadas, da magistratura e da procuradoria, entre outros, não devem ser atingidos pelas mudanças. A reforma também não trata dos cargos eletivos, a exemplo dos deputados e senadores.
"Como se tem uma reforma que, supostamente, vai combater privilégios e altos salários, se segmentos importantes não vão ser atingidos por ela? Quem, de fato, será atingido são os funcionários que ganham mal e a sociedade", comenta Thiago Rodarte.
Mito 2: "economizar dinheiro público"
No último semestre, o Centro de Liderança Pública (CLP), instituto vinculado a empresas interessadas na reforma administrativa, como os grupos Gerdau, Santander, Itaú, Votorantim, BR Partners e BTG Pactual, previu que a reforma faria o país economizar R$ 400 bilhões até 2034.
O economista do DIEESE afirma que, mesmo se a reforma proporcionar redução de gastos, o que é um ponto controverso na discussão, isso se daria às custas dos direitos dos servidores, com diminuição de salários e demissões.
O que nós precisamos é de um projeto de desenvolvimento econômico
Por outro lado, pode ocorrer o efeito oposto, ou seja, maior dispêndio de recursos públicos. Isso porque a proposta do governo abre caminho para que se contrate mais servidores por nomeação ou recrutamento amplo. Essas modalidades, por sua vez, tendem a receber maiores vencimentos.
"Uma situação muito comum no Brasil tem sido o poder público extinguir cargos de carreira e substituí-los por cargos de recrutamento amplo. E, quando faz isso, ele normalmente coloca esses novos cargos com salários mais elevados. Então, se esse padrão se repetir a partir da reforma, podemos, na verdade, ter um aumento do gasto", explica.
Mito 3: "aumentar eficiência"
Defensores argumentam que a introdução de uma dinâmica semelhante à do setor privado, facilitando demissões, proporcionaria mais eficiência no serviço público. Esses mesmos ideólogos alegam que a estabilidade gera acomodação entre os trabalhadores.
Ignora-se, neste caso, que os serviços públicos e privados têm objetivos distintos. O setor privado visa primordialmente ao lucro. Já o setor público tem como missão servir a toda a sociedade, garantindo a concretização de direitos a todo e qualquer cidadão. O que se pode esperar da proposta do governo, na verdade, é a diminuição da eficiência, substituindo a qualificação pelo apadrinhamento.
"Em nenhum momento se vê qualquer dispositivo para aumentar a eficiência no setor público. Essa reforma, muito pelo contrário, tem como grande objetivo aumentar as possibilidades de apadrinhamento no setor público porque ela relaxa o conceito de estabilidade. Ela abre a possibilidade de que diversos cargos sejam ocupados através de nomeações", contesta o economista.
Mito 4: "se a reforma não passar, indicadores econômicos vão piorar"
Percebendo que existe uma razoável mobilização no meio sindical contra a reforma do governo, jornalistas da mídia comercial e consultores do mercado financeiro se põem a vaticinar uma catástrofe econômica, a fim de ganhar o apoio da população pelo medo.
Nessa linha, em recente entrevista ao portal Uol, a economista-chefe do banco Credit Suisse, Solange Srour, chegou a prever uma piora dos indicadores econômicos em seis meses. "O preço do dólar vai subir, a inclinação da curva de juros vai aumentar, teremos pressão na inflação", disse, acrescentando que o governo deveria dar máxima prioridade, neste momento, à PEC Emergencial.
Para o assessor do DIEESE, Thiago Rodarte, essa visão nada mais é do que uma distorção muito simplificada dos problemas da economia brasileira, que tenta fazer com que a reforma que interessa no momento seja vista como âncora da retomada do crescimento.
Nós não sabemos que país queremos ser daqui a 20, 30 anos
"O que nós precisamos, na verdade, é de um projeto de desenvolvimento econômico, que nós não temos. Nós não sabemos que país queremos ser daqui a 20, 30 anos: um exportador de commodities agrícolas ou um país exportador de produtos de alto valor agregado?", questiona.
Já no curto prazo, segundo ele, o combate aos problemas que afligem a população brasileira, como alto desemprego e informalidade, arrocho salarial e carestia, entre outros, exige mais investimentos em obras de interesse da população e em políticas públicas.
"Obviamente, no primeiro momento, haverá aumento do déficit, já que se vai gastar mais. Mas, no segundo momento, quando se tem o aumento do emprego, da renda das pessoas e do consumo, aumenta também a arrecadação, que acaba por pagar a conta feita no momento anterior", pontua.
Um exemplo dessa prática seria o auxílio emergencial de R$ 600, interrompido pelo governo no último mês. "O auxílio provocou um aumento da arrecadação de estados e municípios. As pessoas com dinheiro na mão consomem mais, circulam mercadorias e serviços na economia e isso gera crescimento da arrecadação de impostos", exemplifica Thiago Rodarte.
Quando, por outro lado, o governo corta gastos, como ocorreu nas reformas previdenciária e na aprovação da Emenda 95, as receitas do Estado sofrem um impacto negativo. "O déficit acaba aumentando, como tem acontecido no Brasil", conclui o pesquisador.
Edição: Elis Almeida