Cearense de nascimento, a travesti Cintura Fina se tornou belo-horizontina por escolha. Nascida em 1933, desde os 14 anos passou a viver independente, iniciando sua trajetória como trabalhadora do sexo ainda em Fortaleza, passando por Natal, Recife e Salvador, chegando a Belo Horizonte em 1953.
Com 20 anos e uma experiência de vida já consistente, sabendo como se virar para sobreviver e como reagir às importunações de populares e à violência de clientes e policiais, Cintura Fina construiu algumas formas de resistência para impor a expressão de sua sexualidade e se fazer respeitar.
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Em um centro urbano ainda pouco cosmopolita, Cintura Fina era vista circulando pela zona boêmia, à luz do dia, vestida com trajes e adornos atribuídos ao sexo feminino: sandálias e vestido, leve maquiagem, esmaltes nas unhas, cabelo com corte feminino, sobrancelhas pinçadas. Transgredindo constantemente os padrões binários de gênero, ela marcou as décadas de 1950 e 60 na capital mineira ao performar uma identidade de gênero feminina em um período em que essa expressão era sinônimo de desvio, anormalidade, doença, imoralidade, delinquência.
Em 28 de junho de 1964, após beber algumas doses de aguardente acompanhada de um homem durante o almoço em um bar, ela propôs que os dois fossem a um hotel. Indignado, o homem reagiu com dois tapas no rosto de Cintura. Violência e desrespeito nunca foram aceitos pela travesti, nem para si nem para as mulheres, suas companheiras de trabalho, as quais ela sempre socorreu e protegeu. Em pouco tempo ela deixou o homem desacordado na rua, em frente ao bar. Levada à delegacia, durante seu depoimento ao delegado, ela declarou (tendo sido registrado textualmente no inquérito): “Eu sou mulher, e nasci mesmo foi para os homens”.
A partir de 1972, passou a se anunciar como Zezé Alfaiate
Essa ocorrência, entre outras, ajuda a compreender um pouco da trajetória de vida de Cintura Fina e sua ambivalência: branda no trato, cordial nas relações sociais, prestativa e disposta ao trabalho, virava uma pessoa irascível e incontrolável se se visse alvo de deboche, maus-tratos, injúria, importunação e violência física. A posse de uma navalha amarrada a um elástico, que sabia manejar e jogar com perícia para se proteger nos embates físicos, adicionava um traço de distinção a sua imagem.
Mas se esses elementos compõem um capital simbólico dúbio e oscilante para Cintura Fina, a imprensa, as instituições da Segurança Pública e o Judiciário se encarregam de operar conjuntamente para traçar uma imagem definidamente negativa na forma de representar sua índole, seu temperamento e sua personalidade. E isso pareceu pesar para Cintura Fina. Já nos anos 1970 e 1980, ela adotou mais ostensivamente um discurso de regeneração, ingressando inicialmente na atividade de costura.
A partir de 1972, passou a se anunciar como Zezé Alfaiate – seu nome civil era José Arimateia, de onde declinou Zezé, um apelido de duplo gênero. Em 1973, quando perguntada por um jornalista sobre Cintura Fina, ela responde: “Cintura Fina é meu irmão”. Nos anos 1980, já residindo em Uberaba, empregou-se em uma parte da década como enfermeiro.
Tais atitudes demonstram que sua própria identidade de gênero foi sendo deixada em plano secundário à medida que sua idade avançava, situação relativamente comum para a época, comprovando que a fragilidade física, a instabilidade da saúde, a solidão e a falta de perspectivas na velhice podiam levar travestis a abandonar seu processo identitário de gênero para ser retirada do desamparo social.
Luiz Morando é autor do livro "Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (2020)", vendido neste site.
Edição: Elis Almeida