Acompanhamos agulhadas isoladas feitas para emocionar, mas sem impacto no controle da pandemia
O otimismo é um péssimo conselheiro em momentos de crise. Quase sempre atua para amenizar o sofrimento em nome de um dia que virá, em breve, recuperar o tempo perdido. Dá para entender que esse mecanismo funcione para diminuir a pressão psicológica e tornar o ambiente mais respirável. Mas é preciso cuidado. As boas notícias não consagram a esperança, apenas adiam a necessidade de reagir.
A situação brasileira – política, econômica e sanitária – nunca esteve tão ruim. E vai piorar, pelos elementos que temos em mãos: ascensão irresistível do Centrão; desemprego estrutural (ou a irrefreável uberização das atividades econômicas sem direitos) e o fim do auxílio emergencial; e recordes em cima de recordes de doentes e mortos pela covid-19. No entanto, a imprensa burguesa e alguns setores preferem mudar o foco e partir para dois tipos de boas notícias. De um lado a consagração da ciência, de outro, as derrotas episódicas do aparelho fascista.
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No caso da pandemia, temos acompanhado uma compreensível celebração da realidade da vacina como conquista da ciência e o início do processo de imunização em todo o mundo. A boa nova vem sempre seguida da expectativa de reversão do quadro de crise, com exemplos de idosos imunizados e elogio aos profissionais de saúde. Aberta a porta da esperança, agora é tudo questão de tempo para a vida voltar ao normal. A falácia só não é maior que o perigo real.
A vacinação começou sem vacinas suficientes para todos, sem equidade na forma e distribuição entre os países e sem um pensamento capaz de compreender a pandemia como um processo planetário. A lentidão do ritmo no Brasil, ampliado pela postura anti-iluminista e pela falta de planejamento, indica um cenário inconcebível para qualquer otimismo. Na toada que temos seguido, o prazo para vacinação de toda a população chegaria a três anos - em 20 dias alcançamos apenas 2% da população brasileira. Se não houver surgimento de novas variantes e mantida a atual proporção de produção e distribuição de imunizantes, esse é cenário menos catastrófico.
E até agora nada aponta para uma mudança qualitativa dessa circunstância, pelo contrário: as doses que dispomos estão chegando ao fim e o ambiente de disputa comercial não indica que será fácil sequer manter o mesmo baixíssimo patamar. Quanto à organização do processo de vacinação em si, o que faltou de planejamento no começo se agrava com as mensagens confusas emitidas pelo governo federal sobre registro, compra e distribuição do produto. O único critério que parece fazer conexão na cabeça positivista do ministro-general é a proporcionalidade, o que não tem sentido para a epidemiologia, que trabalha com dados muito mais complexos.
O bolsonarismo vitaminado pelo Centrão é um casamento feliz para sempre do neoliberalismo mais tacanho com a estupidez
É aí que entre o otimismo irresponsável que tem guiado nossos dias. Numa operação mental de autoengano, o importante é que tudo já tenha começado e daqui para frente siga seu caminho natural. No entanto, nem a questão da produção foi resolvida nem a competência dos processos de vacinação tem dado mostra de aprimoramento. A cada dia, recolhe-se relato de rompimento de prioridades e, o que é mais grave, de retroação na competência histórica do país em vacinar de forma massiva, na balbúrdia da falta de comando. Acompanhamos agulhadas isoladas feitas para emocionar, mas sem impacto no controle da pandemia. Os casos só aumentam. As UTIs estão lotadas. As mortes disparam.
Para piorar, países ricos cada vez mais perdem o constrangimento de sua inspiração atavicamente colonialista, ameaçam fabricantes com processos e reservam vacinas acima de suas necessidades. A OMS parece ter perdido o protagonismo e com isso a perspectiva de um processo mundial de vacinação, o único que se justifica no caso de uma pandemia, que não será extinta se não o for em todo o planeta. O atendimento aos países mais pobres começa a entrar na faixa da benemerência. O que é um retrocesso político, um equívoco sanitário e um entrave civilizacional.
Banda fisiológica
Se o otimismo não se justifica no caso da pandemia, menos ainda na situação de caos político que tomou conta do país. A aliança do governo federal com a banda fisiológica raiz indica que a tempestade perfeita está pronta para despejar suas águas tóxicas. De agora em diante, as pautas ditas racionais se juntam às comportamentais, dando unidade ao programa de destruição nacional.
A direita já entendeu que não tem candidato ainda para substituir Bolsonaro e que não terá problema em apostar nele mais uma vez
A agenda, a partir de agora, deverá ser conduzida de forma ordenada em direção ao entreguismo, à desnacionalização, à extinção de direitos, ao enfraquecimento das instâncias democráticas, ao fortalecimento do setor financeiro e ao extermínio, à destruição do meio ambiente e das políticas sociais. Somada ao preconceito, à discriminação, ao estímulo à violência e ao elogio da ignorância.
O que um dia foi um projeto de aposta em paralelo – com uma face dirigida ao eleitorado boçal e outra aos interesses do capital – se transforma agora em política única. Bolsonaro não precisa se desculpar com seu gado, nem se constranger com a fatia educada (sic) de seus apoiadores. A contradição está resolvida pela construção de uma base pragmática que tem força para levar adiante caminhos que pareciam se bifurcar. O bolsonarismo vitaminado pelo Centrão é um casamento feliz para sempre do neoliberalismo mais tacanho com a estupidez em estado de excelência.
Otimismo não ajuda
É aí que o otimismo de parte da oposição tem tudo para deteriorar ainda mais a situação. Apenas comemorar a queda de popularidade do presidente é uma insensatez desmobilizadora, que vai se esvair entre os dedos com as próximas ações populistas. Por outro lado, dirigir a energia política para 2022 é entregar de bandeja 2022. A direita já entendeu que não tem candidato ainda para substituir Bolsonaro e que não terá problema em apostar nele mais uma vez. Imprensa corporativa, mesmo em chiliques, aí incluída. O jogo da sucessão não se dará no ano que vem, já está sendo jogado.
Na economia, aceitar que o retorno do auxílio emergencial é fruto de mobilização da sociedade ou ação sensível do Congresso é uma falácia perigosa. Que pode dar a Paulo Guedes uma promoção em seu papel de frentista do posto de gasolina. Não é à toa que ele anda tão pimpão em seu retorno às canchas, com espaço de sobra para retomar seu discurso fiscalista como expressão da responsabilidade. Enquanto conta tostões para garantir a retomada da aprovação popular do presidente e faz salamaleques aos deputados e senadores, prepara a retomada de seus compromissos com o capital e contra o trabalho.
Em 20 dias vacinamos apenas 2% da população brasileira, mantida a atual proporção demoraremos 3 anos
Não há motivos para apostar no “dia que virá”, no “apesar de você”, no “amanhã há de ser outro dia”. As forças populares e democráticas estão acumulando derrotas e precisam mudar o jogo. Deixar de lado o pensamento ameno defendido pelos meios de comunicação, a indignação de fancaria com um governo que a mídia ajudou a eleger e a concessão ao clima de retomada da sensatez ou mesmo da vitória da razão sobre o fanatismo. Não se trata de uma disputa de narrativas, mas de poder. Está tudo ruim, embora as notícias por vezes pareçam colorir a realidade com esperança.
As pessoas estão morrendo de forma cruel e evitável, os paladinos da ciência convivem amargamente com a cloroquina e o país está cada vez mais fascista. Já é ruim o suficiente. Mas pode piorar. Se é para recorrer à canção popular, está na hora de “botar o bloco na rua”.
Edição: Elis Almeida