A Fundação Renova não pode mais existir por representar os interesses das mineradoras – Vale, BHP e Samarco – que a mantém e ser incapaz de cumprir de forma independente com as ações de reparação do maior desastre ambiental da história do Brasil, o rompimento da barragem de Mariana.
Por isso, o MPMG acaba de ajuizar ação civil pública pedindo a extinção da Fundação Renova, a nomeação de uma junta interventora para exercer a função de conselho curador, incluindo um desenho institucional de transição e a condenação por danos morais no valor de R$10 bilhões.
O modelo atual da Fundação Renova, que teve as suas contas rejeitas pela quarta vez pelo MPMG, que apontou diversas ilicitudes na gestão da Fundação e a interferência direta das mineradoras, “é como se fosse autorizado que os acusados no processo penal e nos processos coletivos em geral pudessem decidir e gerir os direitos e as garantias fundamentais das suas próprias vítimas”, diz a ação.
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Segundo o MPMG, é evidente a ilicitude constitucional e legal da Fundação Renova e impossível a sua manutenção, pois “não é razoável, diante dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, da dignidade humana, ambiental e do próprio devido processo legal” que a Renova siga sendo responsável pela reparação do desastre de Mariana.
Esse pedido, que deverá ser analisado pela justiça estadual de Minas Gerais, mexe com todo o modelo fechado em acordos anteriores que definiram os programas executados e que se provaram insuficientes diante da gravidade e a complexidade do caso, que completou 5 anos em novembro último.
Extinção é consequência de anos de irregularidades
A extinção da Renova é a consequência de uma série de irregularidades e investigações que tenho denunciado no Observatório desde a criação da Fundação, em 2016.
Há a suspeita de que a Renova esteja sendo usada em manobras fiscais por Vale, Samarco e BHP para reembolsar parte dos bilhões gastos até hoje. Em 2020, a Renova também decidiu cortar o auxílio financeiro a sete mil pessoas em Minas Gerais e no Espírito Santo, foi denunciada por uma “possível violação em massa de direitos humanos” e obrigada pela justiça a voltar atrás.
As propagandas veiculadas pela Renova em alguns dos principais jornais e veículos do país ao custo de R$ 17 milhões foram consideradas enganosas e irregulares pelo Ministério Público Federal e defensorias públicas. A Renova foi usada para pressionar prefeitos da bacia do Rio Doce a abrir mão de ações judiciais no Brasil e no exterior.
Dezenas de milhares de pessoas sequer foram reconhecidas como atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana até hoje e os distritos destruídos pela lama ainda não foram reconstruídos. Alguns, como Paracatu de Baixo e Gesteira, estão em fase prévia de estudos ou aguardam os projetos serem homologados pela justiça.
Falta de participação dos atingidos
Um ponto crítico de toda a história é a falta da participação dos atingidos, o que motivou inclusive uma repactuação do acordo original feito em 2016, reformado em 2018 para tentar garantir que as pessoas afetadas tivessem realmente voz no processo.
Não funcionou.
É o que afirma o MPMG na ação, destacando que ao longo desses mais de cinco anos, diversas foram as falhas dos programas da Fundação Renova apontados no âmbito do sistema do Comitê Interfederativo (CIF), no processo judicial, nos relatórios técnicos dos experts do Ministério Público e trabalhos e manifestações realizadas pelas representações dos atingidos.
“A resistência da Fundação Renova” em resolver os problemas, dizem os promotores, “decorre, em grande medida, da falta de participação dos atingidos na concepção, implementação e execução das medidas reparatórias”.
Outro fator relevante, continua o MPMG, é o fato de que a Fundação Renova insiste em desconsiderar estudos técnicos elaborados e/ou validados no âmbito do sistema CIF, bem como a produção técnica dos experts no diagnóstico socioeconômico e socioambiental e no monitoramento dos programas.
Para os promotores Gregório de Almeida e Valma Cunha, “é urgente que estes ilícitos e desvios de finalidade sejam imediatamente cessados como forma de restabelecer a incidência da ordem jurídica, dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais e de próprio devido processo legal”.
Modelo de transição complexo
Segundo a ação, o regime de transição deverá assegurar tudo o que foi negociado até aqui, um caso complexo que envolve a manutenção do sistema de governança, com suas respectivas atribuições, incluindo o Comitê Interfederativo (CIF) e instâncias internas (Câmaras Técnicas, Comitês de Assessoramento), as Comissões Locais de Pessoas Atingidas e Assessorias Técnicas contratadas, Auditoria Externa Independente, experts e contratações específicas dedicadas ao monitoramento dos programas mediante Acordos de Cooperação Técnica-Científica.
O objetivo é realizar o processo de repactuação mediante plano de ação e cronograma a ser estabelecido em comum acordo pelo Ministério Público, Defensoria Pública, Empresas, a União, o Estado De Minas Gerais, o Estado Do Espírito Santo, com a participação dos atingidos, conforme os princípios e cláusula do TAC-Gov (acordo reformulado de 2018).
O Plano de Ação e o Cronograma deverão considerar duas frentes de atuação a serem trabalhadas no Processo de Repactuação, destacam, uma voltada à própria repactuação dos programas de reparação hoje em curso, considerando o respeito aos direitos humanos e a participação dos atingidos e outra relativa à nova governança voltada à condução dos Programas Socioambientais e Socioeconômicos, “garantindo-se que essa venha se dar por meio de processos e fluxos que assegurem imparcialidade, legitimidade, participação, transparência, preservando-se os objetivos e premissas estabelecidos nos acordos pelas partes e assumidos como compromissos pelas empresas envolvidas com o desastre”, destacam.
Durante a transição, as mineradoras devem garantir que nenhuma medida de reparação tenha seu cronograma suspenso ou atrasado. “Seria incoerência aceitar que as irregularidades da Fundação Renova possam justificar qualquer atraso ou não realização da reparação de todos os danos causados pelas empresas envolvidas no desastre, sobretudo considerando que já se passaram 5 anos e ainda há muito a ser feito para garantir a reparação integral”, afirmam os promotores.
O MPMG pede que seja contemplado pela decisão liminar de intervenção a nomeação de uma junta interventora judicial, que exercerá a função de conselho curador, composta por membros indicados pelo MPF, MPMG, MPES, o presidente do CIF, o estado de MG e do ES e as defensorias públicas da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Pedidos finais
Nesse caso, é importante conhecer os detalhes dos pedidos finais do Ministério Público de Minas Gerais, que mostram a responsabilidade das mineradoras e como será feita, na prática, a extinção da Renova, sem que isso acarrete mais prejuízos aos atingidos e sem que os dirigentes que eventualmente respondam por medias cíveis e criminais saiam impunes. São eles:
1- Extinguir a FUNDAÇÃO RENOVA, com a consequente averbação da sentença junto ao serviço de registro civil de pessoas jurídicas de Belo Horizonte e cancelamento da inscrição junto ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ);
2 – Condenar as instituidoras e mantenedoras SAMARCO MINERAÇÃO S.A, VALE S.A. e BHP BILLITON BRASIL LTDA, em responsabilidade solidária, à reparação dos danos materiais causados no desvio de finalidade e nos ilícitos praticados dentro e por intermédio da FUNDAÇÃO RENOVA, com a frustração dos Programas Acordados no TTAC e nos seus objetivos estatutários, com desvios de finalidade, sem prejuízo das medidas cíveis e criminais a serem adotadas posteriormente em face dos dirigentes que concorreram para a prática dos ilícitos, danos esses a serem apurados em liquidação de sentença, conforme admite o art. 324, §1º, inciso II, do CPC;
3 – Condenar as instituidoras e mantenedoras SAMARCO MINERAÇÃO S.A, VALE S.A. e BHP BILLITON BRASIL LTDA, em responsabilidade solidária, à reparação dos danos morais no valor de R$ 10 dez bilhões de reais, que corresponde aproximadamente aos valores gastos, com ineficiência dos Programas, até o presente momento por intermédio da FUNDAÇÃO RENOVA, revertendo o valor da condenação ao desenvolvimento de políticas públicas de direitos humanos e ambientais nas regiões atingidas pelos rejeitos decorrentes do rompimento da Barragem do FUNDÃO.
4 – Expedir ofício ao Ministério da Previdência e Assistência Social, para que informe se há débitos pendentes junto ao INSS; à Caixa Econômica Federal, referentemente aos débitos junto ao FGTS; às Fazendas Federal, Estadual e Municipal;
5 – expedir ofício aos Serviços de Registro Imobiliário de Belo Horizonte, a fim de levantar eventual patrimônio imobiliário da FUNDAÇÃO RENOVA; expedir ofício ao Banco Central do Brasil, requisitando informações sobre contas bancárias de qualquer natureza em nome da FUNDAÇÃO RENOVA; proceder à liquidação do patrimônio fundacional (inclusive com a publicação de edital para conhecimento de terceiros interessados) e à reversão dos bens residuais, com a nomeação de liquidante, nos termos do Estatuto e do artigo 69 do Código Civil.
“Faltam resultados, falta reparação, falta boa vontade das empresas: falta empatia e humanidade para com as pessoas atingidas. Cinco anos depois, as duas maiores empresas de mineração em todo o mundo não conseguiram reconstruir um único distrito”, conclui a ação.
Procurada para comentar, a Renova não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Atualização: leia na íntegra a resposta enviada pela Renova após a publicação da matéria.
A Fundação Renova discorda das alegações feitas pelo Ministério Público de Minas Gerais relacionadas às contas da instituição e informa que irá contestar nas instâncias cabíveis o pedido de intervenção proposto em Ação Civil Pública nesta quarta-feira (24).
Além das prestações de contas realizadas anualmente, a Fundação também encaminha ao MPMG as respectivas aprovações de suas contas feitas pelo Conselho Curador, pelo Conselho Fiscal e pela empresa independente responsável pela auditoria das demonstrações financeiras, conforme prevê a Cláusula 53 do TTAC.
As contas da Fundação Renova são ainda verificadas por auditorias externas independentes, que garantem transparência no acompanhamento e fiscalização dos investimentos realizados e dos resultados alcançados. As contas da Fundação foram aprovadas por essas auditorias.
A respeito do questionamento do MP relacionado ao superávit da Fundação Renova em 2019, é importante esclarecer que é recomendável que instituições do terceiro setor trabalhem com superávit, indicador de que o trabalho está sendo realizado de forma qualificada e técnica. No caso da Fundação Renova, o valor relativo ao superávit é reaplicado nas ações de reparação do ano seguinte.
Sobre a remuneração de seus executivos, a Fundação Renova esclarece que adota uma política de mercado, com valores compatíveis com as responsabilidades assumidas. Importante esclarecer que os valores aportados pelas mantenedoras para o custeio da fundação (salários e custos administrativos) não comprometem e não são contabilizados nos valores destinados à reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento de Fundão.
Cabe ressaltar que a Fundação Renova é responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, cujo escopo engloba 42 programas que se desdobram nos projetos que estão sendo implementados nos 670 quilômetros de área impactada ao longo do rio Doce e afluentes e em ações de longo prazo. Cerca de R$ 11,8 bilhões foram desembolsados pela Fundação Renova até o momento, tendo sido pagos R$ 3,26 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 320 mil pessoas até janeiro deste ano.
A indenizações ganharam novo impulso com o Sistema Indenizatório Simplificado, implementado pela Fundação Renova a partir de decisão da 12ª Vara Federal em ações apresentadas por Comissões de Atingidos dos municípios impactados. Ele tem possibilitado o pagamento de indenização a categorias com dificuldade de comprovação de danos. O primeiro pagamento por meio do sistema foi realizado em setembro. Até o início de fevereiro de 2021, mais de 5 mil pessoas foram pagas pelo Sistema Indenizatório Simplificado. O valor ultrapassou R$ 450 milhões.
Reparação
A Fundação Renova permanece dedicada ao trabalho de reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), propósito para o qual foi criada.
As obras dos reassentamentos têm previsão de desembolso de R$ 1 bilhão para 2021, um aumento de 14% em relação ao ano anterior. O valor refere-se a todas as modalidades de reassentamento, englobando as construções dos novos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, e, também, a modalidade de reassentamento Familiar e a reconstrução de residências em comunidades rurais. O avanço da infraestrutura, priorizado dentro do plano estratégico de prevenção contra a Covid-19, permitirá a aceleração da construção das residências das famílias atingidas. Assim, os reassentamentos coletivos ganham desenhos de cidades planejadas.
A questão do prazo de entrega dos reassentamentos está sendo discutida em um Ação Civil Pública (ACP) em curso na Comarca de Mariana, tendo sido submetido recurso para análise em segunda instância (TJMG), o qual ainda aguarda apreciação e julgamento. Nesse contexto, foram expostos os protocolos sanitários aplicáveis em razão da Covid-19, que obrigaram a Fundação a desmobilizar parte do efetivo e a trabalhar com equipes reduzidas, o que provocou a necessidade de reprogramação das atividades.
A água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional em sistemas municipais de abastecimento. Além disso, foram recuperados 113 afluentes, pequenos rios que alimentam o alto rio Doce. Cerca de 888 nascentes estão com o processo de recuperação iniciado. Até o momento, as ações de restauração florestal alcançam mais de 1.000 hectares em Minas Gerais e no Espírito Santo, uma área equivalente a 1.000 campos de futebol.
Na área de saneamento, 9 municípios iniciaram obras para tratamento de esgoto e resíduos sólidos com recursos repassados pela Fundação Renova. Estão previstos R$ 600 milhões para projetos nos 39 municípios impactados.
Em 2020, a Fundação iniciou um repasse de R$ 830 milhões aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e prefeituras da bacia do rio Doce, para investimentos em infraestrutura, saúde e educação. Esses recursos promoverão a reestruturação de mais de 150 quilômetros de estradas, de cerca de 900 escolas em 39 municípios e do Hospital Regional de Governador Valadares (MG), além de possibilitar a implantação do Distrito Industrial de Rio Doce (MG).