Nesse 27 de fevereiro de 2021 venceu, mais uma vez, o prazo para que as famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana tenham acesso às suas casas. Essa é a terceira vez que o prazo para entrega das nossas casas é descumprido pela fundação Renova, pela Samarco, Vale e BHP.
O descumprimento representa a continuidade do monopólio da vida das pessoas atingidas nas mãos das mineradoras Samarco, Vale e BHP. Diante de tamanho poderio dessas empresas fica extremamente difícil mostrar para a opinião pública o quanto a nossa vida está diretamente ligada ao reassentamento. Nesses mais de cinco anos de luta e espera é impossível tentar traçar qualquer plano de vida, uma vez que esse processo toma boa parte do nosso tempo e da nossa estrutura psicológica. É um total descaso e uma grande falta de respeito com as famílias atingidas pelo crime dessas empresas.
Estamos há 5 anos e três meses sem nossas casas. Com todo esse atraso, temos medo de nunca ter nossa moradia de volta. Durante esse tempo nós vivemos em grande expectativa, fizemos várias assembleias, escolhemos um lugar e acreditamos que nossas comunidades e casas seriam reconstruídas. Acreditamos que seria rápido, pois a Fundação Renova sempre disse que dinheiro não era problema. São muitas as formas de ilusão que a Renova utilizou.
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Tudo que diz respeito às decisões das famílias e das comunidades foi acelerado: nos incentivaram a aprovar projetos de casas e votamos às pressas os projetos urbanísticos. Hoje, sabemos que estavam nos “cozinhando em banho-maria”. Muito tempo se passou e a Renova, junto com as mineradoras, afetaram a nossa capacidade de sonhar com a retomada de nossas vidas. O sentimento de frustração fica mais forte a cada dia que acordamos e nos vemos presos nessa situação.
Quem tem o poder de nos livrar dessa angústia parece se esforçar justamente no sentido contrário, para que o momento da reparação integral não chegue.
No escritório da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF), temos o cronograma de entrega dos reassentamentos. Lá está o primeiro prazo, 31 de março de 2019, apresentado pela própria Renova – que não o cumpriu. É triste saber que esse tempo inteiro eles brincaram com os sentimentos das pessoas atingidas. Nesses cinco anos e três meses, o que vemos são as pessoas de nossas comunidades sofrendo com ansiedade, estresse, depressão e outras doenças, em um processo de adoecimento contínuo. Muitas já morreram sem ver suas casas.
O medo de morrer antes de as moradias ficarem prontas têm feito com que muitas pessoas desistam de ir para os reassentamentos coletivos. Outras, não podem mais esperar porque a roda da vida não para: filhos nascem, crescem e precisam seguir a vida de qualquer jeito. São sucessivos os atrasos das mineradoras e da Fundação Renova, que descumpriu também o prazo determinado pela Justiça, 27 de agosto de 2020, e o atual prazo, fixado em primeira instância, 27 de fevereiro de 2021.
O descumprimento não se deve à incapacidade da Samarco. Se assim fosse, ela não teria voltado a operar em Mariana, como fez no dia 11 de dezembro de 2020. A retomada das atividades da mineradora nos mostra o quanto somos irrelevantes. Enquanto a Samarco explora a nossa terra e tira sua riqueza, ela cria obstáculos e desculpas para reparar as pessoas atingidas.
As pessoas da zona rural de Mariana têm um modo de vida intimamente ligado à terra e não dependem da operação da Samarco para sua sobrevivência. Antes do rompimento da barragem, nem sabíamos que a mineradora estava tão perto de nós, pois ela não fazia parte do nosso cotidiano. A vida provisória em casas ou sítios alugados, não basta para que consigamos recuperar esse modo de vida. A solução é o reassentamento, a reparação total e justa desse crime.
Modos de vida interrompidos
A demora na entrega das casas impacta negativamente na vida das famílias das comunidades atingidas em Mariana. Antes do crime, muitos de nós eram campesinos e viviam do cultivo de cana, milho, feijão, mandioca e outros alimentos. O orgulho dos mais velhos era ter a terra para passar para os filhos, herança que, por sua vez, receberam de seus pais.
As comunidades eram unidas, de tudo se trocava, desde experiências até alimentos. Não precisávamos de muito dinheiro, porque fazíamos o escambo. Nos entornos havia moradores de sítios e a terra era fonte de renda para todas as idades. Ninguém ficava sem trabalho, é próprio do nosso povo ser um povo trabalhador. Na cidade como se ocupa esse tempo? É muito difícil. Estamos há mais de cinco anos confinados.
O empobrecimento é altíssimo. Diferente do imaginário que circula na cidade de Mariana, de que os atingidos estariam sendo assistidos monetariamente pelas empresas, quando as famílias fazem suas contas, o que realmente temos como medidas de mitigação financeira, enquanto a indenização não acontece, é incompatível e insuficiente. A vida girava em torno da terra e das trocas entre as comunidades.
Hoje, a dificuldade de conseguir um emprego na sede do município é imensa. Além disso, o custo de vida em Mariana é alto, justamente por ser uma cidade mineradora, sem empregos suficientes. Com um auxílio financeiro de um salário mínimo mal dá para sobreviver. Ninguém está rico e nem vai ficar.
Nas nossas comunidades, estávamos cercadas de verde da Mata Atlântica, ar puro e fresco. Por lá passa o rio Gualaxo do Norte, que era usado para manter as plantações ou mesmo como fonte de alimentação, pela abundância de peixes. Hoje o rio tem rejeito tóxico e quem ainda está perto dele sente tristeza pelo que virou. A gente vê também que nos reassentamentos coletivos não vai ter água para os animais e para as plantas, o que nos deixa ainda mais inseguros sobre como vai ser nossa vida no futuro.
Antes do rompimento da barragem, tudo em nossas comunidades era lindo. O nosso forte era o lazer, as cavalgadas, o esporte, as festas religiosas e todo mundo cooperava para fazer acontecer. Nossas comunidades têm história centenária, tradições, causos e lendas, os nossos rostos mostram os traços de ancestrais indígenas e negros. A culinária passada de geração em geração, as mulheres tinham mãos bentas.
Hoje inverteu tudo. A vida na cidade não é nosso modo de viver. Frequentar supermercado, andar de ônibus, não comer as verduras que costumávamos plantar na nossa terra. Não queremos essa rotina. Isso só causa angústia, que aumenta a cada dia. Perdemos nossa liberdade, nossa vida.
As crianças eram muito felizes, podiam brincar soltas, tinham lazer nas águas e árvores nas comunidades. Pais e mães podiam sair para a labuta tranquilos porque a comunidade tomava conta das crianças. Tínhamos confiança mútua e um tomava conta do outro. Hoje as crianças estão vendo os pais com tempo reduzido por causa de uma situação que nunca acaba. Algumas nem conheceram a comunidade de sua família, outras já levam metade da vida fora da comunidade. Adolescentes estão se tornando adultos sem um horizonte de futuro.
Hoje contamos mesmo é com Deus e com nossa fé para conseguir sobreviver até o reassentamento ficar pronto. 27 de fevereiro de 2021 era para ser um dia de alegria e de volta para a nossas casas, mas se tornou um dia de sofrimento, angústia e revolta. Um dia em que, mais uma vez, fazemos o apelo para as pessoas que estão no poder: façam algo para que esse crime não nos mate antes de os danos causados serem reparados.
Perguntamos aos responsáveis por esse crime continuado: vocês têm a capacidade de deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilos enquanto acabam com as nossas vidas e sonhos? Quando vão entregar nossas casas? Queremos resposta!
Cláudia de Fátima Alves, atingida de Bento Rodrigues e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão em Mariana/MG (CABF)
Luzia Queiroz, atingida de Paracatu de Baixo e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão em Mariana/MG (CABF)
Mirella Lino, atingida de Ponte do Gama, zona rural de Mariana, e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão em Mariana/MG (CABF)
Com apoio de Ellen Barros, jornalista e comunicadora da Cáritas MG, entidade que atua como Assessoria Técnica aos atingidos pela barragem de rejeitos da Samarco em Mariana/MG.
Edição: Elis Almeida