O Governo Federal, por meio do Ministério da Cidadania, surpreendeu prefeitos, gestores e profissionais da área com a imposição de alterações na gestão do Cadastro Único e do Programa Bolsa Família, sob a justificativa de uma “modernização”.
De imediato, a proposta de burocratização e de esvaziamento do papel dos municípios na governança integrada do programa gerou reações diversas e pressões para que o governo interrompa as mudanças, tendo em vista os impactos negativos quanto ao acesso da população mais pobre e em condição mais desigual.
O Cadastro Único para Programas Sociais (Cadúnico) foi desenvolvido em 2001, tendo sido aprimorado com a implantação do Programa Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias.
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É reconhecido mundialmente como uma importante ferramenta utilizada pelas Administrações Públicas para acesso aos diversos programas sociais e de transferência de renda no Brasil, especialmente o Bolsa Família, mas também a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas idosas e com deficiência, os Benefícios Eventuais que atendem milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade nas cidades e os programas estaduais e municipais que utilizam suas bases para a definição de prioridades, como composição da renda familiar.
As mudanças impactam no acesso e podem representar maior exclusão, justamente num momento de grave crise provocada pela pandemia.
Outras funcionalidades importantes do Cadúnico correm risco, como a produção de informações relevantes sobre a população usuária e os territórios vulneráveis, que permitem, em diferentes escalas, orientar a definição de políticas públicas nas três esferas de governo, além de oportunizar a avaliação do cumprimento de objetivos globais, notadamente o de redução da pobreza.
Mudanças têm relação direta com um projeto de fragilização das institucionalidades do SUAS, SUS e sistema educação
Dentre as mudanças em processo, a que tem sido motivo de maior apreensão é a substituição do cadastramento operado por entrevistadores sociais nos municípios pelo acesso direto via aplicativo online, nos mesmos moldes do Auxílio Emergencial. O próprio usuário deverá preencher os campos para acessar os programas sociais.
Mudanças nos procedimentos operacionais, no desenho dos programas e na lógica de gestão das políticas sociais encontram relação direta com um projeto de fragilização das institucionalidades construídas no campo dos sistemas públicos estatais, como o SUAS, o SUS e o sistema educação.
Tais mudanças fazem parte de um conjunto de medidas ultraneoliberais de redução do Estado, de “desfinanciamento” das políticas sociais, de retorno a um passado de clientelismo predominante e de ataque ao modelo de democracia participativa e deliberativa instituído pela Constituição de 1988.
Um verdadeiro atraso para quem promete modernização em gestão pública
Entidades representativas de prefeitos, gestores e da sociedade civil têm posicionado a necessária retomada do pacto social e federativo e a revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os recursos para as políticas sociais por 20 anos, que induz a adoção de medidas como esta que vemos agora, que na prática burocratiza, desumaniza e exclui a população.
É preciso considerar o que já é consenso no sistema internacional de direitos humanos e vem sendo amplamente sinalizado, especialmente no atual contexto de profunda crise global: reduzir recursos e o papel do Estado contribui diretamente para a queda continuada nos indicadores de desenvolvimento humano, aumenta a pobreza e aprofunda a desigualdade. Um verdadeiro atraso para quem promete modernização em gestão pública.
Desconsiderar as avaliações dos atores relevantes da política de Assistência Social quanto às fragilidades no acesso ao Auxílio Emergencial via aplicativo, a história de acúmulo na gestão compartilhada dos programas sociais e o contexto de grave crise sanitária, social e econômica é, no mínimo, uma “desinteligência” que contraria os apelos e as demandas sociais legítimas por ações em defesa dos direitos, da democracia e da vida.
Jucimeri Isolda Silveira é professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas e do Curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Edição: Elis Almeida