Não está na hora de falar em diálogo. Mas em dialogar desde já
Bolsonaro, toda vez que é chamado a se manifestar sobre a pandemia, só enxerga a eleição de 2022. Lula, convocado a falar de sua elegibilidade em razão da decisão do STF, fez questão de trazer para o primeiro plano a dramática situação de perdas humanas no país. Essa não é uma diferença banal, é um dado de civilização. De um lado um homem que não respeita a ciência, o sentimento humano e a democracia. De outro, a empatia, a defesa da política e da razão.
Lula começou seu discurso no Sindicato dos Metalúrgicos com máscara, cercado de pessoas com máscaras. Bolsonaro, sempre ao lado de bajuladores sem máscara, tem insistido em não utilizar o equipamento, além de alardear irresponsavelmente a sua ineficácia. A primeira menção de Lula foi de solidariedade às famílias dos mortos.
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Bolsonaro abre sempre suas mensagens com o descaso pelas perdas humanas, com afirmações entre cruéis e jocosas. De um lado a primazia da sensibilidade e do conhecimento. Do outro, ignorância e maledicência.
De um lado a primazia da sensibilidade e do conhecimento. Do outro, ignorância e maledicência
As comparações poderiam se seguir, deixando claro que há uma distância inequívoca entre os dois. Mas o mais importante é tomar essa distinção no que ela tem de essencial. Diferentemente do que tem sido dito pela imprensa comercial, não se trata de uma polarização, o que envolveria a diversidade de pontos de vista dentro de um mesmo patamar de razoabilidade. Bolsonaro não polariza com ninguém, ele está isolado num universo fascista que não admite contestação.
O presidente não partilha dos valores mínimos que caracterizam a política e seu papel no aprimoramento da sociedade. É antidemocrata – e por isso não pode se valer da democracia enquanto trama golpes a todo tempo. É mentiroso – e, portanto, não merece o debate no campo das ideias. É desumano em moral – o que o desqualifica para apresentar propostas no universo das relações sociais. Não merece sequer ser qualificado como de extrema direita. Ele está fora da órbita da política.
Lula trouxe em seu discurso um grão de esperança que há muito não se via. Não apenas pela viabilidade eleitoral – que ainda tem que superar muitas etapas, no interior da própria esquerda e do centro e mesmo entre os democratas mais à direita –, mas, sobretudo, pelo realinhamento das expectativas da sociedade. A maturidade não está apenas na capacidade de compreender a complexidade das situações e a necessidade de ampliar alianças. Muitas vezes ela precisa ativar o dificílimo equilíbrio entre a indignação e a busca de diálogo. Em uma fala cheia de acertos, este tom foi sua mais sábia conquista.
Não há polarização entre dois candidatos, mas entre democratas e um monstro
Há muito os brasileiros, independentemente da preferência ideológica, esperavam ouvir uma mensagem como essa. Que reconhecesse a dor do momento. Que apontasse a necessidade de ser solidário. Que fosse capaz de falar para todos com sinceridade e urgência. Que apontasse com clareza e sem ódio os descaminhos absurdos do governo federal no combate à pandemia e na condução da economia. Que recuperasse a história recente dos equívocos propositais do sistema de justiça e da mídia. Que conclamasse para um olhar racional, mas sensível, para nossas calamidades. Que lembrasse o papel do governo e dos governantes.
No entanto, é preciso seguir a lição do próprio Lula e não se deixar perder pela soberba da crença de ocupar um lugar cativo na história. É preciso ser pragmático. A imprensa, que no primeiro momento aproveitou da manifestação do ex-presidente para alimentar sua indisposição com Bolsonaro, em poucas horas passou a reeditar seu antipetismo atávico. Já começa a onda para escolher a alternativa “liberal” e para enfraquecer as alianças que partem do centro em direção à esquerda e, até mesmo, para retomar o moralismo punitivista em relação ao ex-presidente.
O panorama visto de longe no tempo – ainda não é momento de começar a campanha – indica poucas certezas além da indefinição. Os 30% de Bolsonaro, se não derreterem, garantem sua presença no segundo turno. Os resultados das pesquisas, que dão ao petista a melhor condição de concorrência, ainda são preliminares sem a composição mais definida do quadro sucessório. Mesmo na esquerda, há necessidade de estabelecer esse consenso. As alternativas conservadoras ainda testam sua reverberação e estão em campo em busca de apoios na imprensa e entre próceres do passado que se aliaram vergonhosamente ao golpe de 2016.
Por sorte temos um estadista de novo em cena
Lula deu a senha para seu futuro e também para a ação dos democratas brasileiros. Neste momento, é preciso responsabilidade imediata com a pandemia, com a vacinação e com a defesa do SUS. A eleição será fruto de uma construção que pode seguir diferentes caminhos, da afirmação de valores inegociáveis à negociação de outros que apontem para a indispensável derrubada do projeto em curso. Vencer Bolsonaro é uma tarefa essencial para o país. O que vai exigir sabedoria para se movimentar numa linha que pode ir da frente única às alianças estratégicas no segundo turno.
Não há polarização entre dois candidatos, mas entre democratas de todos os matizes e um monstro.
Não está na hora de falar em diálogo. Mas em dialogar desde já. A imprensa já mostrou que não é parceira da democracia, mas do projeto econômico neoliberal antipopular, temperado com o pudor do genocídio anunciado, mas sem altivez para assumir sua responsabilidade. A justiça, mesmo com a decisão de anular o julgamento de Lula e seguir com a avaliação da suspeição de Moro, deixa sempre entrever sua divisão e capacidade de realinhamento constrangido, como a própria decisão de Fachin anuncia, garantindo a elegibilidade de Lula enquanto passa pano para a Lava Jato.
Por sorte temos um estadista de novo em cena. É a única boa notícia, mesmo que nem de longe seja garantia de nada nesse lodo acidulado do bolsonarismo e de seus seguidores. Lula não é hoje uma esperança, mas um método, mais maduro e consciente. Ele chega em meio a mortes evitáveis, apontando a necessidade do trabalho do luto para seguir em frente.
Como lembra Freud, a prova da realidade nos mostra muitas vezes que o objeto amado já não existe. Para superar a perda é preciso um grande investimento de tempo e de energia, que respeite o que pereceu, mas que insista na continuidade da vida. O luto dos nossos dias aponta a direção desse trabalho: sem política não há salvação.
Edição: Elis Almeida