Como uma mulher negra, eleita deputada estadual em um estado que nunca antes na história teve uma mulher negra em um cargo como esse no legislativo, não tenho como evitar a revolta e a tristeza em ouvir em meu expediente de trabalho o secretário de saúde admitir que mesmo não cumprindo os pré-requisitos no grupo prioritário foi vacinado. É importante situar de onde eu falo para que quem não conhece a realidade da periferia entenda o quanto isso afeta a vida das idosas e idosos que, quando recebem o benefício da aposentadoria, não ultrapassa um salário mínimo.
Desde 1997 eu moro na cidade de Ribeirão das Neves (MG), em um bairro em que muitas ruas ainda são de terra. Grande parte dos meus vizinhos trabalham em Belo Horizonte (MG) e todos os dias embarcam no transporte público superlotado para chegar no emprego e, depois, para retornar para casa.
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Como é comum em bairros como o meu, as funções exercidas pelos moradores são braçais e consequentemente inviáveis de serem realizadas via home office. Lavar, passar, cozinhar, varrer, carregar caixas, assentar tijolos são atividades profissionais que não permitiram meus vizinhos a ficarem em casa para se resguardar durante a pandemia e não aglomerar no ir vir.
São milhares de idosos que compartilham a casa com esses trabalhadores, que moram em barracões pequenos e não tem condições financeiras para manter o distanciamento ou o isolamento social.
Ciente dessa realidade, quando chegou na assembleia o PL 2230/2020, para definir, dentre outras questões, quem são os grupos prioritários no âmbito estadual, me debrucei para fazer uma emenda que garantisse equidade. Me movimentei para colocar na lei que quem está em uma situação de maior vulnerabilidade fosse vacinado primeiro.
A pressão deu certo e o tal secretário foi exonerado
Além dos idosos e profissionais de saúde na linha de frente, que já citava o documento, me atentei e inseri quilombolas, indígenas e acautelados como grupo prioritário. Essa lei foi aprovada, e agora está sendo burlada justamente por um médico contratado como secretário de saúde. Justamente por quem deveria garantir o acesso igualitário ao Sistema Único de Saúde.
Os números de leitos disponíveis no estado não mais suportam a quantidade de infectados pelo covid-19, a ponto de mineiros estarem sendo transferidos para hospitais de São Paulo.
Agora, como eu vou explicar para os meus vizinhos idosos que um servidor público desviou a vacina deles? Como eu vou olhar no rosto das matriarcas desse estado e fazê-las entender como um servidor público, que faz seu expediente de trabalho em casa, vacinou antes dela?
Eu não posso fazer isso, não foi pra isso que eu fui eleita. Minha função é fiscalizar e garantir que tudo ocorra dentro da legalidade e propor alternativas que atendam à população através dos projetos de lei. E é exatamente isso que eu fiz quando assinei a CPI para apurar a atitude do secretário ao lado de outros deputados da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
A pressão deu certo e o tal secretário foi exonerado. Apesar da demissão, o PSOL e eu protocolamos em conjunto nesta sexta-feira (12) petições perante a Procuradoria Geral da República, a Promotoria de Justiça de Belo Horizonte e a Defensoria Pública na capital.
Perante o Ministério Público Federal, pedimos a investigação do agora ex-secretário pelo crime de peculato, isto é, a apropriação indevida de bens públicos, e do Governador Romeu Zema por condescendência criminosa, ou seja, acobertar ilegalidade praticada por subordinado. Já perante o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública, pedimos a responsabilização por crime de improbidade administrativa.
O que a periferia, a população negra, indígena e quilombola quer da gestão pública é respeito, eficiência na gestão e idoneidade. A parte que me cabe sigo fazendo.
Andréia de Jesus é deputada estadual de Minas Gerais pelo PSOL.
Edição: Rafaella Dotta