Dia 18 de março de 2020, o Governo de Minas Gerais anunciou que estabeleceria um recesso escolar entre os dias 18 e 22 de março na rede estadual de educação. Na mesma data, o Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep-MG) anunciou que acataria as orientações e paralisaria as atividades da rede particular durante o mesmo período.
Parecia que os quatro dias de suspensão decretados pelo governo para monitorar a situação da pandemia, que chegava ao Brasil, parecia suficiente. Quase um ano depois, em março de 2021, a situação só piorou e nesse período as escolas, os professores, os pais e os alunos tiveram que se adaptar ao sistema emergencial remoto, que, aos poucos, perdeu o viés de urgência e se tornou perene em todo o estado.
54% das famílias mineiras não possuem computador
O que tem sido o ensino remoto
A priori, o ensino à distância surgiu em Minas Gerais como uma metodologia alternativa ao sistema de aulas presenciais, imposto pela Secretaria de Estado de Educação (SEE) na rede estadual, impactando 1,7 milhão de estudantes regularmente matriculados.
A secretária de Estado de Educação, Julia Sant'Anna, em coletiva de imprensa à época destacou que o modelo adotado foi desenvolvido em sintonia e diálogo com professores, equipe pedagógica e instituições ligadas à educação. De acordo com ela, todos os recursos foram pensados para garantir que fosse contemplado o maior número possível de alunos.
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“Muitos alunos podem não buscar acompanhamento como aulas remotas, mas espero alcançar a maioria dos 1,7 milhão de alunos da rede estadual”, afirmou a secretária.
Para o Regime de Estudo à distância, foram estruturados três recursos: o Plano de Estudo Tutorado (PET), o aplicativo Conexão Escola e o programa de TV “Se Liga na Educação”, reproduzido pela Rede Minas, o canal de televisão público do estado. Porém, o ensino à distância não contemplou todos os alunos, principalmente aqueles que vivem em realidades mais carentes.
Exclusão no processo educacional
Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 54% das famílias mineiras não possuem computador e 24,7% não têm acesso à internet. Dentre os 853 municípios de Minas Gerais, a Rede Minas está presente em apenas 200.
Apesar da declaração da secretária de educação, a deputada estadual e professora Beatriz Cerqueira (PT), presidenta da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais afirmou, em Audiência Pública, que nunca existiu diálogo.
“A proposta não foi construída com a participação de setores importantes que elaboram sobre educação, como a própria categoria, como os departamentos de educação das universidades federais e o Fórum Estadual de Educação. Profissionais da educação não só não ajudaram na construção, como também não tiveram um processo de formação. Eles estão sendo obrigados a utilizar internet pessoal ou fazer dívidas para aquisição de instrumentos de tecnologia para que consigam dar conta de uma demanda ao qual não é responsabilidade deles”, relatou a deputada.
Mulheres somam jornada de trabalho, cuidados domésticos, ser mãe e agora são também as principais mediadoras da escolarização
Alexandra França, historiadora e pedagoga, professora da rede privada e mãe de um menino de 3 anos, que estuda em uma creche vinculada à Prefeitura, comenta que os impactos desse processo de educação serão, com certeza, muito graves.
“Nós sabemos a importância da socialização, do conhecimento, dos estudos em ambientes compartilhados. Enquanto professora da rede privada, eu penso na possibilidade de haver reparação, não que seja necessariamente tão efetiva, mas ela vem através do privilégio dos meus alunos em terem acesso a plataformas e um pouco mais de estrutura para lidar com o ensino”, avaliou.
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A sobrecarga das famílias
Para alunos excluídos do modelo à distância, devido à falta de internet, de computador ou televisão, seria disponibilizado o Plano de Estudo Tutorado (PET) de forma impressa, além da distribuição por site, e-mail e WhatsApp. Porém, muitas escolas estaduais não tinham cópias o suficiente para todos os alunos ou cobravam pela impressão. Alunos que iam à escola buscar o material, voltavam para a casa sem nada.
Segundo a Secretaria de Estado, a organização da entrega do material impresso aos estudantes deve ser feita pela escola, em diálogo com as Secretarias Municipais de Educação, por meio do aproveitamento dos trabalhadores em deslocamento das prefeituras e outras possibilidades que existam em cada comunidade escolar.
"Quem vai ficar mais prejudicado são os alunos em alfabetização"
Para a deputada Beatriz Cerqueira, a proposta feita em Minas Gerais é uma tentativa de transferência de responsabilidade do Estado em garantir um processo de aprendizagem, materializado pela escola e pela professora, para as famílias.
“Isso causará mais estresse à família, mais ansiedade à criança ou ao adolescente, uma sensação de exclusão para quem não conseguir pagar apostila, para quem não conseguir assistir à Rede Minas, para quem não tiver os dados de Internet suficientes e para quem não tiver algum celular para baixar o aplicativo. Uma exclusão que pode, no pós-pandemia, resultar em mais evasão escolar ”, reflete.
Essa mesma transferência de responsabilidade ocorreu desde o princípio com as escolas particulares. Muitas famílias tiveram que dividir seus computadores com crianças ou adolescentes, além de adicionar o ensino e auxílio presencial às jornadas de trabalho. Principalmente, no caso das crianças mais novas, o cargo do educador passou a ser dever dos pais.
Crianças invadem as lives
A sobrecarga é maior para os pais que precisaram readaptar suas rotinas adicionando a grade escolar dos filhos. No caso de crianças que estão no início do período de alfabetização e letramento, o desafio e a responsabilidade de orientar passa a ser também de familiares não graduados da área.
Principalmente para as mulheres, que além de possuírem um emprego com uma jornada de trabalho de 8 horas, ainda contam com o trabalho doméstico e o papel de mãe. Agora, são também as principais mediadoras desse processo inicial escolar.
No trabalho remoto, se tornou frequente interrupções de crianças invadindo as conferências dos pais, garantindo risadas e momentos descontraídos. Mas afirmar que isso não se tornou um problema do teletrabalho é maquiar o período de pandemia.
Diferenças do ensino particular e público têm se mostrado durante a pandemia
É a realidade de Alexandra Jardim, que durante esse ano trabalhou como professora em aulas remotas, com uma criança de 3 anos dentro de casa.
“Tem sido uma situação muito complicada por ser uma criança tão nova. Ele não tem a compreensão suficiente pra entender o meu período de trabalho, então em vários momentos durante as minhas aulas, eu preciso atender ele. Eu converso com os meus alunos, peço licença quando há tempo. Mas isso gera um desconforto tanto para mim profissionalmente, por interromper um raciocínio, quanto para meus alunos e para meu filho”.
O desafio da alfabetização
“Quem vai ficar mais prejudicado são os alunos em alfabetização porque eles ainda estão nesse processo, que foi cortado no meio, então provavelmente vai ser iniciado do zero”, avalia Thabata Arcanjo, estudante do último período de pedagogia da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
Os últimos dados da Avaliação Nacional da Alfabetização de 2016, apontam que menos da metade dos estudantes do 3° ano do Ensino Fundamental alcançaram os níveis de proficiência suficientes em leitura. Quais serão as perspectivas e o tamanho do desafio para a educação no Brasil depois da pandemia?
A alfabetização é um processo de aprendizagem, no qual o indivíduo desenvolve a competência de ler e escrever. Já o letramento diz respeito à aplicação da leitura e escrita nas práticas sociais.
O retorno presencial seguro e “estável” não parece próximo
Thália Drummond, psicóloga e pedagoga especializada em inclusão social, explica que a alfabetização e o letramento são um processo cognitivo ligados à experiência social que a escola oferece. “Não adianta pensar na alfabetização, porque ela não vai acontecer de outra forma que não seja por aquelas relações sociais, pela interação social com seus pares, com os professores, com os espaços e as possibilidades que a escola oferece”.
Segundo o último Censo Escolar, realizado em 2018, em todo Brasil são mais de 20 milhões de crianças matriculadas no período fundamental para a alfabetização: da pré-escola aos anos iniciais do ensino fundamental.
Perspectivas desiguais
Vivemos em tempos nebulosos, onde a incerteza do futuro acaba impactando a progressão escolar atual sem qualquer previsão de quando a pandemia vai acabar e como enfrentaremos uma realidade que foi bruscamente interrompida. No conclamado “novo normal”, a dinâmica escolar pode se alterar para sempre, abrindo espaço para que instituições de ensino vislumbrem um futuro com aulas em sistema híbrido, tanto online, quanto presenciais.
Porém, com uma maioria de crianças e adolescentes sem acesso a computadores e a internet, essa opção intensifica as desigualdades sociais, reflete a pedagoga Thabata Arcanjo. A diferença do ensino dado por redes de ensino particulares e públicos já tem se mostrado durante a pandemia.
No retorno, escolas precisarão atender demandas emocionais
“Também tem a grande diferença entre a escola particular e a escola pública. Na maioria das particulares estão tendo aulas online síncronas, que seriam as aulas por vídeo, ou vídeo aulas mandadas pelo WhatsApp. Nas escolas públicas é totalmente diferente. Algumas delas tem um grupo de WhatsApp com os pais para tirar dúvidas, aí não tem aula online. Os pais buscam o PET nas escolas e eles tem um prazo para devolver. Os meninos precisam fazer o documento inteiro sozinhos em casa e devolver para a escola preenchido”.
Um dos motivos, segundo Thabata, é o visível desnível de investimento entre a rede particular e pública.
Realidade de retrocessos
Em agosto de 2020, o Ministério da Educação calculou um corte de R$ 4,2 bilhões no orçamento de 2021, uma redução de 18,2% em relação ao orçamento aprovado para 2020. Os gastos do governo federal na educação foram só recuando em dados divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional. Em 2016 foram investidos mais de R$ 100 bilhões da educação, enquanto em 2019 haviam regredido para R$ 92,37 bilhões.
“Nós, enquanto professores, não estamos satisfeitos”, comenta Luana Grammont, professora da rede municipal de BH e diretora da comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte (Sind-REDE). “Durante esse ano não foram criadas tantas alternativas para melhoria do acesso aos alunos quanto a gente acredita que é possível fazer. Ao invés de vermos um crescimento de investimentos em educação, para garantir essa estrutura, vemos cada dia mais propostas de redução”.
Uma nova escola
E quais são as perspectivas? As aulas serão retomadas? Como professores, pais e alunos estarão quando a dinâmica da escola presencial voltar?
No que diz respeito à infraestrutura das escolas para o retorno das atividades presenciais, será preciso analisar o sistema de ensino básico para garantir a segurança de todos. Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (NOVO) e parte dos parlamentares, se mostraram favoráveis a uma retomada gradual híbrida. Em coletiva realizada no dia 25 de fevereiro, Zema afirmou que: “No que dependesse de nós, as aulas já teriam sido retomadas”.
Porém, esse retorno “estável” não está próximo. Com base em dados do Censo Escolar, pesquisa de 2018, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) mostrou em um estudo que, dentre as 5 mil escolas estaduais de Minas, mais de 900 não possuem refeitório para alimentação, mais de mil escolas não possuem banheiro para funcionários e mais de 900 não têm pátio externo, de acordo com reportagem do Brasil de Fato MG.
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Para Thália Drummond, professora e psicóloga, ainda é um mistério como será a escola depois da pandemia, mas acredita que, definitivamente, não será a mesma. Mas ainda não seria possível definir quais serão as demandas.
“A gente sabe que tem um aspecto emocional que pode impactar no cognitivo, que pode prejudicar o desenvolvimento da criança. Temos que estar prontos para atender essas demandas, porque são comportamentais, emocionais, sociais e impactam na aprendizagem. A escola agora precisa ter esse olhar. Porque não é acolher só na questão do aprendizado, mas emocionalmente também”, comenta a professora.
Uma perspectiva é unânime, a “nova escola” deverá ser idealizada através de um compilado de estudos, tentativas de unir o digital com o presencial, trabalhando com os traumas e os aprendizados da pandemia.
Edição: Rafaella Dotta