Minas Gerais

ECONOMIA

Artigo | Minas Gerais: vocação mineradora ou autodestruição?

“A mineração está em nosso DNA", afirmam as propagandas para reforçar que MG tem um "destino" a essa atividade econômica

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
"O pátio externo da igreja serve como estacionamento de funcionários e só quem já esteve no local pode mensurar a sensação de desrespeito e revolta" - Foto: Carolina Capanema

É recorrente ouvirmos na mídia que Minas Gerais tem uma “vocação mineradora”, principalmente em propagandas veiculadas pelas grandes corporações que praticam esta atividade ou pelos agentes públicos dos altos escalões do poder interessados em seu desenvolvimento.

Trata-se de um discurso que atribui uma conotação positiva a certa tradição histórica de exploração mineral em Minas. Nestes discursos, o uso da palavra “vocação” assume um sentido político, vinculando-se a uma ideia de destino, de algo irrevogável, quando, na verdade, refere-se a um processo construído historicamente. Afinal, nenhuma atividade ou processo histórico são permanentes, são frutos, sim, de interesses que se sobrepõem em cada época.

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Não pretendo afirmar aqui que seja um discurso construído de forma unilinear desde a colonização do estado, pois ao longo do tempo a atividade mineral acompanhou as diversas mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais por que passaram o país e o mundo. E estas impactaram, por sua vez, nas técnicas aplicadas na exploração, bem como na gestão, nas disposições jurídicas e nos discursos que a sustentam.

Tradição histórica x destruição do patrimônio

Ainda assim, acredito que pensar a construção discursiva da “vocação mineradora” como um continuum é também um ato político, ainda que haja rupturas e os interesses políticos e econômicos dos sujeitos sociais sejam peculiares a cada período, pois permite que identifiquemos e tentemos desfazer as tramas que organizam este discurso.

Um de seus fundamentos situa-se exatamente na defesa da tradição histórica da mineração no estado de Minas Gerais. Este que foi fundado e teve seu patrimônio inicial construído por meio dos lucros advindos da exploração de suas jazidas minerais.

O incentivo à exploração de minérios em Minas Gerais é uma escolha política

Mas, paradoxalmente, a mineração em Minas destruiu e vem destruindo parte do patrimônio que ela mesma ajudou a construir. Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana que foi exterminado com o rompimento da barragem da Samarco há cinco anos (veja abaixo na figura 1), foi fundado pelos exploradores de ouro que se estabeleceram na região central do estado a partir do final do século XVII.


Figura 1: Bento Rodrigues após o rompimento, 2015. / Foto: Senado Federal, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

Congonhas é outra cidade mineira fundada pela exploração mineral no século XVIII e corre riscos sistemáticos de rompimento das 23 barragens de rejeitos que estão em seu território, classificadas entre alto e baixo risco. A barragem Casa de Pedra, pertencente à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) (veja na figura 2, abaixo) é apontada como um dos maiores reservatórios de rejeitos de mineração localizados em área urbana no mundo e com classificação de alto risco de dano potencial associado.


Figura 2: Barragem Casa de Pedra, zona urbana de Congonhas/MG. / Foto: Google Earth, jul.2020

O território de Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto, sofre diariamente com os impactos das atividades da empresa siderúrgica Gerdau S.A. em sua área urbana. Ali também se repete o padrão que chamo de "autodestruição", pois parte de seu patrimônio edificado remete à implantação no local da Usina Wigg, produtora de ferro, no século XIX.

A figura 3 mostra, ao centro, o Santuário do Sagrado Coração de Jesus, construído na primeira metade do século XX e ainda utilizado pela população local, cercado pelas instalações industriais da Gerdau S.A.. O pátio externo serve como estacionamento dos funcionários da empresa e só quem já esteve no local pode mensurar a sensação de desrespeito e revolta que isto suscita pelo impacto às práticas culturais e religiosas locais.


Figura 3: Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Miguel Burnier. / Foto: Carolina Capanema, fev.2014

Portanto, em que sentido a utilização do argumento da vocação histórica é válida para legitimar a manutenção da atividade mineral, se ela vem destruindo ou ameaçando os vestígios históricos desta tradição?

Vejamos como a alegação de uma propensão histórica à mineração em Minas vem sendo utilizada pelos interessados na manutenção das atividades minerais.

Em abril de 2019, em vista das críticas feitas à mineração após o rompimento das barragens de rejeitos de minério de ferro em Mariana e Brumadinho, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) lançou um vídeo promocional em apoio àquela atividade. No vídeo disponibilizado na plataforma do Youtube, a entidade utiliza enfaticamente o argumento de uma vocação histórica do estado para o desenvolvimento de atividades minerárias: “a mineração está em nosso DNA. É nossa vocação e está no centro do nosso desenvolvimento há mais de 300 anos”, adverte o comercial.

No mesmo mês de abril de 2019 foi realizado o Seminário Técnico Internacional sobre Barragens de Rejeitos e o Futuro da Mineração em Minas Gerais, por iniciativa do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), com o apoio de empresas do setor, do poder público e, novamente, da FIEMG.

Em texto escrito para divulgar os resultados do evento, o presidente desta última instituição, apontou, em tom alarmante, que se a indústria da mineração não retomasse o ritmo normal de produção, que teria sido interrompido pelo que ocorreu nas duas cidades de Minas, o impacto na economia mineira seria catastrófico, “uma tragédia”, pois, segundo ele, esta teria na mineração a sua base.

PIB de Minas Gerais e atividade minerária

Ora, mas não é isso que mostram os dados oficiais sobre o Produto Interno Bruto (PIB) de Minas Gerais. Segundo informações da Fundação João Pinheiro, para o ano de 2018, a participação da indústria no PIB de Minas era de apenas 25,8%, enquanto o setor de serviços contribuiu com 68,8%. Estes dados não diferem de anos anteriores, segundo série histórica disponível desde 2002. Portanto, em que sentido a mineração se configuraria como a “base” da economia mineira, como afirma o presidente da FIEMG e sugere o vídeo produzido pela instituição?

O incentivo à exploração de minérios em Minas Gerais é uma escolha política, não é algo que pode ser naturalizado. A mineração beneficia e atende a interesses de grandes corporações multinacionais, que atualmente têm poder de estado - na medida e que ocupam lugares privilegiados nos centros dos poderes decisórios* -, e também aos interesses das próprias instituições públicas e dos ocupantes de seus cargos que muitas vezes se beneficiam de recursos adivinhos da atividade, como no caso de financiamento de campanhas e pagamento de royalties.

Mineração em Minas destruiu e vem destruindo parte do patrimônio do estado

Apesar de as negociações e processos de reparação dos desastres causados pela Samarco Mineração S.A. e Vale S.A. estarem longe de serem concluídos, a empresa Vale S.A., controladora também da Samarco, tem investido milhões de reais em propaganda para (re)construção de sua imagem. O argumento da vocação histórica para a mineração continua sendo central em alguns de seus vídeos institucionais, como se o desenvolvimento da atividade tratasse do cumprimento de um destino inexorável da humanidade em direção ao “progresso”.

Mas, então, eu lhes pergunto: estamos indo em direção ao progresso ou à autodestruição? Ou seriam esses dois lados da mesma moeda?

Carolina Capanema é historiadora especializada em história ambiental, com mestrado e doutorado na UFMG.

Nota: * Refiro-me aqui ao protagonismo da atuação das empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billinton na construção de um acordo com a união e os estados de MG e ES para estabelecer medidas reparatórias para os desastres que as próprias empresas causaram. O referido acordo materializou-se na assinatura do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado pelas instâncias citadas em 2016, dando origem à Fundação Renova, que é mantida e gerida por tais empresas privadas responsáveis pelo desastre. Mais recentemente, outro acordo foi celebrado entre a Vale S.A, o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e os Ministérios Públicos Federal e do Estado de Minas. O acordo assinado em 04 de fevereiro de 2021, no valor de R$ 37,69 bilhões, refere-se à parte da reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem da mineradora em Brumadinho. O processo não contou com a participação das pessoas atingidas, correu sob sigilo e não abrange o total do valor inicialmente pedido pelas instituições públicas que somavam R$ 54 bilhões.  

Edição: Elis Almeida