Vivemos no Brasil-atual, o momento de “guerra das liminares”. Não bastasse uma guerra contra um vírus mortal, vivemos uma insegurança jurídica que se alastra desde o controle político no processo legislativo, até a canetada do juiz de primeiro grau. Após, sobrevém decisão de algum desembargador, revogando a decisão do juiz local, validando ou invalidando a norma municipal. Enfim, instala-se o caos.
Na atual conjuntura, tecnicamente, leis municipais – sobretudo de iniciativa parlamentar –, que venham a contrariar o Decreto do governo de Minas Gerais, de março de 2021, que dispõe sobre medidas restritivas em razão da pandemia da covid19, são inconstitucionais. No caso de Timóteo e Ipatinga, vereadores insistem em declarar, por lei municipal, serviços essenciais alguns não listados no decreto, como academias, igrejas e salões de beleza.
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Um dia acordamos com a notícia que o comércio irá fechar a partir de tal dia, exceto em determinada cidade de Minas Gerais. Com isso, o povo se divide, o anseio para afastar ou aproximar da organização político-administrativa de determinada cidade aglutina vozes e tende a pressionar os agentes políticos.
Invocam, para legitimar decisões contrárias às orientações do Estado, uma decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado. Como é o caso do prefeito de Santana do Paraíso que autorizou o funcionamento de atividades e serviços não essenciais na cidade. Mas o momento é outro. Passa-se, então, ao debate do que diz a própria Constituição, o que comporta interpretações diversas. E aqui apresento a minha.
Sobre a Constituição
A Constituição da República, ao adotar o princípio federativo como forma de Estado, dividiu para a União, estados, Distrito Federal e municípios, as matérias e circunstâncias em que cada qual pode legislar e administrar.
Por exemplo, por ser uma questão que envolve interesses além do território municipal e estadual, a Constituição diz que é de competência exclusiva da União (do Congresso Nacional), criar/alterar leis que dispõem sobre direito do trabalho (artigo 22). O mesmo acontece em matéria de direito comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo e aeronáutico.
O vírus ultrapassa as fronteiras dos municípios, o que demanda uma ação regional, não local
No tocante aos estados, a Constituição lhe confere a chamada “competência supletiva” que, consoante ao que diz o artigo 25, podem legislar sobre tudo o que não lhes for vedado. Claro que o estado encontra limite na própria Constituição, uma vez que ao dispor sobre determinada matéria, pode acabar por atentar algum preceito fundamental da Constituição, notadamente naquilo que ultrapassa o interesse regional.
Aos municípios, por sua vez, nos termos do artigo 30, da Carta Magna, compete legislar sobre assuntos de interesse local, além de suplementar – sempre de maneira compatível ao que dispõem – a legislação estadual e a federal.
Ocorre que, por uma questão de “federalismo cooperativo”, os entes federados, em determinadas matérias, devem atuar conjuntamente.
As previsões constitucionais visam delimitar a atuação de cada ente de acordo com a predominância do interesse. Se local, compete ao município. Regional, aos estados. E acima disso, federal, da União, de maneira que também predispõe a competência administrativa de cada um.
Temos, portanto, a competência administrativa, que consiste no poder-dever do gestor de executar as leis e a constituição dentro de sua respectiva competência. Enquanto a competência legislativa seria dispor legalmente, ou seja, editar normas, sempre em harmonia com os paradigmas respectivos como condição de validade.
Em breve síntese: para os municípios, servem de paradigmas “constitucionais” para a validade de leis e decretos municipais: a Lei Orgânica, a Constituição do Estado e a Constituição da República.
Aos estados, por sua vez, a Constituição do Estado e da República, enquanto para a União, deve ser observada a Constituição Federal.
Claro, há ressalvas no tocante à “invasão” de competências. Por exemplo, não compete ao Congresso Nacional legislar sobre impostos municipais, salvo questões de regra geral (artigo 151, da Constituição de 1988).
Por fiel ao breve, basicamente, é o que não nos importa para essa exposição.
Sobre o cuidado da saúde
Como já abordamos, o federalismo brasileiro, apesar de dar certa autonomia aos entes federados, se guia pelo “federalismo cooperativo” ou “federalismo de integração”, que é uma maneira de harmonizar e padronizar a legislação em todo território nacional. Isso se aplica à competência concorrente estabelecida no artigo 23 da Constituição, que assim versa: “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
O Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, decidiu, no ano de 2020, que a União, os Estados e Municípios têm competência concorrente para legislar sobre saúde pública. Naquela ocasião, o STF asseverou que “preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante Decreto, sobre serviços públicos e atividades essenciais”.
Penso não ser prudente do ponto de vista político e jurídico dispor de maneira diversa à onda roxa
O artigo 198 da Constituição de 1988, vale ressaltar, elenca como diretriz nas ações do Poder Público no SUS, a descentralização com direção única de cada governo (federal, estadual e municipal). Assim, cada ente federado possui poder-dever de, de forma cooperada com os demais entes, administrar a crise sanitária da covid-19, dentro de suas respectivas competências.
Nesse sentido, chama atenção que, após o decreto editado pelo governador Romeu Zema, alguns entes aderiram à chamada “onda roxa” com certa resistência. Outros não aderiram e agora buscam amparo no judiciário para não se submeter às limitações impostas pelo Estado. Não obstante, o poder legislativo de alguns municípios busca legislar sobre, contrariando o decreto estadual. Para além das questões de direito constitucional, caso projetos dessa natureza sejam aprovados, caberá ao prefeito o veto, ou, na pior das hipóteses, terá que assumir todo ônus frente às categorias afetadas pela decisão do governo de estado.
Ou seja, mais instabilidade política e insegurança jurídica.
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O trabalhador tenta o repouso sem saber se amanhã poderá ir trabalhar, pois a câmara municipal aprovou determinado projeto. Sofre, sobretudo os que perderam um ente querido, de imaginar multidões nas ruas, propagando o vírus, pois a câmara municipal aprovou determinado projeto. Isso para não colocar em evidência o desamparo do Governo Federal para com os pequenos e microempreendedores e demais trabalhadores.
É preciso, antes de tudo, ter responsabilidade, com a Constituição, com o povo.
Sem entrar no mérito se o governador mineiro errou ou não, fato é que o vírus ultrapassa as fronteiras dos municípios, quiçá dos estados, sobretudo em regiões metropolitanas, o que demanda uma ação regional, não local. No Vale do Aço não cabe, no atual contexto pandêmico, agir de forma diferente ao município vizinho, sob pena de tornar sem efeito qualquer ato que vise administrar, ainda que de forma mínima, o aumento do contágio do coronavírus em toda nossa Minas Gerais.
É preciso, antes de tudo, ter responsabilidade, com a Constituição, com o povo
E é nesse sentido que destaco decisão recente do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, na Medida Cautelar em Suspensão de Liminar de n° 1.428, movida pelo Ministério Público paulista.
Na decisão, publicada em 9 de março de 2021, o ministro reafirma o entendimento da Corte sobre a predominância de interesses nas ações de combate à pandemia, destacando que "ante a aparente predominância na espécie de interesse supramunicipal e tratando-se o ato impugnado na origem de ato normativo expedido no exercício de competência legítima do Estado membro, conforme já reconhecido pelo Plenário desta Corte". Comenta, por fim, que a medidas municipais que contrariam o Estado "representa potencial risco de violação à ordem público-administrativa, bem como à saúde pública, dada a real possibilidade que venha a desestruturar as medidas adotadas pelo Estado de São Paulo como forma de fazer frente a essa epidemia, em seu território”.
Assim, tomando como base as orientações da ciência sanitária do Estado de Minas Gerais e a bem fundamentada decisão do ministro Luiz Fux destacada acima, penso, não ser prudente do ponto de vista político e jurídico dispor de maneira diversa ao que ficou determinado pelo governador.
Medidas de menor zelo ao que determina a “onda roxa”, no meu sentir, provocam insegurança jurídica, prorrogam ansiedades e sentimentos diversos em evidência na população, além de mitigar a eficácia da tentativa de controle da pandemia no âmbito regional.
“Saúde”, hoje, é estar livre do coronavírus, mal a ser enfrentado e vencido por todos, para todos.
Rodrigo Martins é graduado em Direito pela Universidade do Lestes de Minas Gerais – UNILESTE, Pós-graduado em Direito Tributário pela PUC/MG, Assessor Jurídico da Procuradoria Geral do Município de Timóteo em 2017-2018, Procurador-Geral da Câmara municipal de Timóteo no biênio 2019-2020 e Advogado.
Edição: Larissa Costa