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Deus não tem sido brasileiro

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"Não há juristas evangélicos como não há jurista ateu" - Créditos da foto: Banco de imagem STF
Com juristas como Aras e Mendonça, Deus não precisará do diabo para temer por sua obra

Não é preciso entrar no mérito da decisão que movimenta o STF sobre a proibição de cultos presenciais no momento mais grave da pandemia da covid-19 no Brasil. A questão parece pacificada desde o fim da Idade Média ou do surgimento do Estado laico.

O que está em jogo, é mais que evidente, não é a liberdade de religião, mas o interesse de certas igrejas em manter o proselitismo alienante e o trânsito das sacolinhas. O princípio inequívoco da defesa da vida preside ou deveria presidir toda a discussão, seja em relação a missas, cultos e assembleias, seja em relação a festas, baladas e outras formas de aglomeração. Sagradas ou pagãs.

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No entanto, parece que várias associações de juristas, que se autodefinem como evangélicos, cristãos, católicos e outras denominações, acharam de acusar as decisões de restrição de mobilidade para enfrentar a pandemia de estado de sítio ou de exceção, quando não de afronta à liberdade de religião ou, mais gravemente, da própria liberdade em si.

O problema já começa com as entidades que promovem a causa e que protagonizaram o patético culto na sessão virtual do plenário do STF esta semana. As provocações de tais grupos, por sua fragilidade essencial, não deveriam ter prosperado.

Para início de conversa, não se cogita razoavelmente que uma turma de profissionais da lei se apresente a partir de sua confissão de fé ou qualquer outro atributo extrajurídico. Não há juristas evangélicos como não há jurista ateu. Ao se definir como partidário da lei, todo profissional da área se iguala pela aceitação de uma norma consensual, dentro da universalidade possível da construção da ordem jurídica. Sai a Bíblia, o Alcorão, os Sutras, o Talmude, o lunário perpétuo e a folhinha de Mariana e entra a Constituição.

Aras e Mendonça querem – e muito – a vaga de ministro do STF. É para isso que trabalham

Os ministros do Supremo saberão dar, como já deram anteriormente, resposta a esse desvario. É o mínimo que se espera do colegiado maior da Justiça do país. Pelo menos por enquanto. E é aí, nesse “por enquanto”, que mora o perigo. O capeta, como todos sabem, habita nos detalhes. O que essa decisão envolve não são temas complexos, como o sentido da liberdade, a relação entre fé e razão, a sacralidade dos cultos, a primazia da ciência ou a defesa da vida. O que parece estar em jogo é uma prosaica operação de vaidade e ambição pessoal. Não tem nada a ver com Deus ou Constituição, mas com uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal.

Augusto Aras e André Mendonça enxovalharam suas funções constitucionais

Para efeito de simplificação, é possível deixar de fora as manifestações dos advogados que patrocinam ou se aliaram à causa e ficar apenas com os dois representantes institucionais mais graduados do feito, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça. Os dois, como se sabe, são candidatíssimos à toga do ministro Marco Aurélio, que já anunciou a data de seu afastamento da corte. Aras e Mendonça, como bons cristãos, estão atentos aos sinais. Principalmente os emitidos pelo presidente Jair Bolsonaro.

Responsável pela indicação, o presidente já cantou a pedra: o próximo ministro deverá ser “terrivelmente evangélico”. Por causa de tão terrível proposição, o PGR e o AG passaram à corrida para provar que estão à altura da missão. Em suas manifestações na sessão do STF, não citaram a Constituição, mas a Bíblia; deixaram de fora o saber jurídico para se ater aos teólogos e santos; relativizaram a verdade dos fatos para universalizar a fé em valores intangíveis. Enxovalharam suas funções constitucionais para defender o futuro de suas carreiras.

Nunes Marques tem se mostrado um juiz tecnicamente pouco experiente e juridicamente incapaz

O procurador-geral não defendeu a lei; propôs um cavalo de pau na relatoria do STF; e exerceu litigância de má fé. O advogado-geral da União pregou a desunião; patrocinou causa de interesse particular contra os compromissos do Estado frente ao maior flagelo da saúde pública da história recente do país; e abdicou de suas responsabilidades ao descrever uma situação de crise para a qual é pago para enfrentar com medidas e proposições legais (sem esquecer que até ontem ele era ministro da Justiça).

O comportamento dos dois servidores do país e da Justiça se iguala ainda na determinação em não cumprir suas atribuições de servir ao país e à Justiça, mas ao presidente da República. Em várias ocasiões, em prejuízo de suas funções, atuaram para proteger Bolsonaro e família, além de promoverem ações francamente ideológicas, de tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa, de defesa de privilégio de foro para o filho zero-um, e de perseguição a adversários.

A PGR e a AGU não se dispuseram a investigar as responsabilidades do presidente na condução do combate à pandemia. São leais ao chefe, não às suas obrigações constitucionais.

Mas é preciso lembrar que Aras e Mendonça não são apenas fiéis, mas ambiciosos. O que nunca esconderam é que querem – e muito – alcançar a honrosa vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. É para isso que trabalham e, muitas vezes, deixam de trabalhar. Depois do naufrágio do Moro – outro que sempre esteve de olho na toga suprema – as chances do procurador e do advogado aumentaram. E também a subserviência e o oportunismo. A chance, agora multiplicada pela proximidade da vacância na corte, ficou para quem provasse ser mais terrivelmente evangélico que o outro.

Aos poucos se corrói por dentro a instância maior do Judiciário

É bom lembrar que a filiação ao exército dos crentes (a militarização do governo parece não ter limite) atende duplamente a Bolsonaro, já que permite acenar para seu eleitorado mais cativo e carente de afagos, por um lado, e a responder a um setor importante da bancada conservadora do Congresso.

Muitas das agendas de interesse desses dois segmentos passam necessariamente por decisões do Supremo, das questões referentes à ciência (como pesquisas de ponta) às reivindicações referentes a valores sociais e comportamentos individuais. Questões como educação domiciliar, novos modelos familiares, práticas de discriminação, direitos reprodutivos, pesquisa com células-tronco, aborto, liberação de armas, direito à terra, entre outras.

O primeiro passo foi dado com a indicação de Nunes Marques, que tem se mostrado um juiz tecnicamente pouco experiente e juridicamente incapaz para cumprir a função. Além de se colocar na contramão de decisões do plenário e de jurisprudências pacificadas, não goza da consideração dos pares em sua divergência, o que seria até salutar. Tem votado de forma teleguiada com o Executivo e aponta para o horizonte que espera a suprema corte em caso da confirmação de novos juízes de perfil tão fraco, submisso e despreparado.

É nesse sentido que a corrida de Aras e Mendonça para uma segunda vaga de alinhamento automático com o Planalto é tão ameaçadora para a independência dos poderes da República. O procurador-geral e o advogado-geral parecem ter tudo para ser o Nunes Marques de amanhã.

 Bolsonaro se sente poderoso entre militares, religiosos e carreiristas. Sua grandeza é feita da pequenez moral do outro

Em caso de decisões conflituosas, juridicamente complexas e eticamente exigentes, poderão ser o peso antijurídico em questões fundamentais para o país. Aos poucos se corrói por dentro a instância maior do Judiciário, dissolvendo a universalidade do direito na particularidade da manutenção do poder.

Tudo isso aumenta ainda mais a responsabilidade do Senado na sabatina a que será submetido o próximo indicado ao STF. É preciso que os senadores atuem com responsabilidade, que exerçam o papel a eles determinado pela Constituição de avaliar a qualificação técnica e moral do postulante, não como uma indicação presidencial personalista ou para cumprimento de qualquer tipo de cota, seja ideológica ou religiosa.

O fracasso anunciado de Nunes Marques, que se espalhará com cinza ao vento por muitos anos, não está na conta apenas do presidente e de seus apoiadores, mas também dos senadores que aprovaram seu nome.

Militares, religiosos e carreiristas

Uma explicação de ordem psicológica talvez ajude a entender comportamentos tão desprezíveis dos postulantes ao cargo. Em quase 30 anos de vida pública, Bolsonaro nunca teve o respeito de seus pares, dos empresários, da academia, dos partidos, dos militares, da imprensa e da sociedade. Mantinha seu volume morto em parcelas reduzidas do radicalismo de extrema-direita.

Seu ressentimento o levou a inverter o jogo, tentando submeter setores que o desprezavam. O que não funciona para pessoas, grupos e instituições autônomas, funciona muito bem em segmentos de fundo essencialmente autoritário e dependente, como militares, religiosos e, sobretudo, carreiristas.

Esses três grupos são formados na obediência estrita a hierarquias inquestionáveis, no pensamento mágico contra os fatos, e na ambição pessoal por cargos, poder e dinheiro. Os militares se curvaram às nomeações em todos os escalões e ao protagonismo no governo; os religiosos fundamentalistas ajoelharam no genuflexório da garantia de sua prática moralista, reacionária, alienada e financeiramente lucrativa; os carreiristas à submissão sem limites ao desejo superior, único capaz de pavimentar a rota de sua ambição. Bolsonaro, nesses ambientes, se sente poderoso.  Sua grandeza é feita da pequenez moral do outro.

É neste sentido que a ação independente do STF está mantida apenas “por enquanto”, seja dos ataques antimodernos, seja das pautas anticivilizatórias e de afronta às liberdades e direitos fundamentais. Com todas as suas limitações, que não são poucas, não se pode arguir da atual corte nem a ignorância jurídica, a má fé de origem, ou a conspiração aberta contra a ordem democrática. Com juristas como Aras e Mendonça com a toga displicentemente jogada sobre os ombros, Deus não precisará do diabo para temer por sua obra. Será tudo uma questão de tempo.

Edição: Elis Almeida