Era inverno de 2011 quando escutei o álbum Acabou Chorare pela primeira vez. Eu estava de intercâmbio na fria Auvérnia francesa e meus novos amigos brasileiros me falavam dele como um dos álbuns mais marcantes da história da música popular do seu país.
Naquela época, eu já passava muitas horas escutando Jorge Ben, Gal Costa, Gilberto Gil, Cássia Eller, Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Noel Rosa e um longo etcétera de músicos e grupos brasileiros que não faziam outra coisa que aumentar meu profundo interesse e paixão pela música popular brasileira e tudo o que dela respira. E ao final de cada dia, sempre acabava escutando Acabou Chorare. Era um ponto fixo na trilha sonora do meu pequeno apartamento de 10 metros quadrados.
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Não precisei de muito tempo para saber que os meus amigos tinham razão: era mesmo um álbum único, um álbum lançado em 1972 e que, depois de quase 40 anos, ainda exalava o frescor melódico, a revolução de estilos, as letras mágicas, a pura alegria baiana.
Nunca estive no estado da Bahia, mas posso dizer com toda certeza que Novos Baianos me convidou muitas vezes a conhecê-lo, a imaginá-lo e a desejá-lo por meio de suas canções, muito melhor do que poderia fazer um documentário, um filme ou um breve passeio pela Wikipedia.
Moraes nos deixou no dia 13 de abril de 2020, aos 72 anos
Sempre que escutava esse álbum não podia deixar de pensar em revolucionários da música com os quais estava mais familiarizado. Como a voz eterna de Jesús de la Rosa, cantor e compositor do grupo Triana, cruzando planetas e corpos celestes no ritmo de rock andaluz. Ou no maestro José Monge, mais conhecido como Camarón de La Isla, desafiando os mais puristas ao marcar os doze tempos das "bulerías", com uma bateria em Leyenda del Tiempo, o álbum mais famoso da história da música flamenca. Ou mesmo nos irmãos Amador, agitando a tradição do flamenco espanhol tocando o Blues de la frontera com seus sorrisos malandros. Pouco a pouco, chegava à conclusão de que os caminhos do bairro Triana e as ruas do Pelourinho não estavam tão distantes como pareciam.
O álbum Acabou Chorare tem tanta música boa, tanta magia, tanta riqueza, tantos detalhes, que os pensamentos e as emoções me vêm às dezenas. Lembro de saborear a composição de Assis Valente e a voz de Paulinho Boca de Cantor em “Brasil Pandeiro”. Me encantava, sobretudo, aquilo de “eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar” – ainda que, ao final, não tenha sido apenas o tio Sam, mas o mundo inteiro, que acabou sambando.
Desfrutava de maneira especial do espírito carnavalesco da percussão baiana em “Swing de Campo Grande” e ia dormir a noite escutando a voz de Baby Consuelo cantarolando as sílabas da parte final de “A menina dança”.
A maior homenagem deste texto eu reservo à música que é sua maior obra de arte: “Acabou Chorare”
Também me lembro que as canções que considerava as mais bonitas e profundas do álbum tinham todas o selo pessoal de alguém que indiscutivelmente tinha sido tocado por uma varinha mágica. Esse alguém era o baiano Antônio Carlos Moraes Pires, mais tarde conhecido como Moraes Moreira.
Moraes nos deixou no dia 13 de abril de 2020, aos 72 anos, em seu domicílio no Rio de Janeiro (que lugar mais lindo para se despedir deste mundo!).
Sua “Preta Pretinha” estaria feliz ao inteirar-se que, naquele dia, se fez eterna. E é certo que os acordes elétricos de seu “Mistério do Planeta” seguirão ajudando que algumas pessoas tenham breves parênteses de lucidez nas nossas vidas para fazermos perguntas sobre o que é verdadeiramente importante para o nosso castigado planeta – principalmente nos tempos que correm.
A maior homenagem deste texto eu reservo à música que, para mim, é sua maior obra de arte: “Acabou Chorare”. Uma linda canção de ninar que todos deveríamos escutar pelo menos uma vez na vida. Estou certo de que se esta canção não te arranca uma lágrima ou um mínimo suspiro é porque não há coração ou aquele que você tem apodreceu durante o confinamento.
Muito obrigado pela obra, Moraes. Agora você é um pássaro que vive avoando, avoando sem nunca mais parar.
José Antonio Ramos Cuadra é espanhol, formado em Turismo pela Universidade de Sevilla, na Espanha, e filho de um pai apaixonado pela música popular brasileira.
Edição: Elis Almeida