Mais de 800 dias se passaram desde que o rejeito da mineradora Vale atingiu comunidades ribeirinhas do Paraopeba, do Rio São Francisco e da represa de Três Marias, contaminando as bacias e causando falta de água e inúmeros prejuízos para as populações de 26 municípios, onde vivem mais de 1 milhão de pessoas.
Embora o poder público e a própria empresa tenham realizado estudos sobre a qualidade da água, população reclama da insuficiência e falta de acesso aos dados. Por isso, as assessorias técnicas estão promovendo análises independentes, com a participação dos atingidos.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
“O peixe ficou mal falado”
Depois que a Barragem 1, da mina Córrego do Feijão, rompeu em Brumadinho, Simone de Assis, moradora de Abaeté, no Centro-Oeste mineiro, passou a ter que comprar água para beber. Porém, o maior impacto ocorreu na pesca na represa de Três Maria, fonte de sobrevivência da família.
“O peixe ficou mal falando. A gente vai vender e não querem pagar quase nada porque dizem que está contaminado. Antes, dava pra tirar uns ‘três mil e poucos’ por mês. Agora, não chega a R$ 1.500”, reclama, acrescentando que não foi indenizada pelos danos sofridos, tampouco recebeu atenção da empresa. “Nós nunca tivemos ajuda nenhuma explicação da Vale, nem visitas”.
Centenas de famílias reclamam da falta de água, suspensão no fornecimento e baixa qualidade
Em Angueretá, distrito de Curvelo, região Central do estado, Roziane Duarte produz e vende queijos e doces. “A porteira do principal pesqueiro fica em frente ao nosso sítio. Então, as pessoas costumavam vir para pescar, passar o fim de semana e vinham aqui comprar. No início, não achamos que seríamos atingidos, mas, depois, começamos a observar que os doces e queijos estavam até perdendo. Depois do rompimento da barragem, pararam de vir”, relata.
Roziane também teme que as cisternas dos moradores, o açude da região e os peixes estejam contaminados. “Quando tem uma enchente, a água do rio derrama e vem bem perto da casa da gente. Então, o medo é de os peixes contaminados virem para cá e de a cisterna ser contaminada”. Muita gente que comia peixes do córrego ou do açude agora não come mais, com medo da contaminação.
Muita gente que comia peixes do córrego agora não come mais, com medo da contaminação
O morador do bairro Vale do Sol e integrante da comissão de atingidos de São Joaquim de Bicas, Warley Rodrigues dos Santos, se queixa de excesso de cloro na água e interrupções no abastecimento, desde o rompimento da barragem, e nenhuma reparação financeira com relação à falta de água e aumento no valor das contas.
“O pessoal que pescava para vender hoje em dia não consegue mais. As pessoas ficam com medo de comprar, achando que é do Rio Paraopeba. Quem mexe com horta também não consegue sobreviver mais com isso. Uma parte do bairro onde eu moro recebe [o auxílio financeiro emergencial]. A outra não, porque não está dentro dos 100 metros da calha do rio. Hoje em dia, tem muita gente que passa necessidade por não ter outra fonte de sobrevivência”, acrescenta.
Análises da empresa e do Estado
Em sua página oficial, a mineradora afirma que tem dado prioridade ao monitoramento entre o Paraopeba e a foz do São Francisco, ao abastecimento das localidades, com 1,2 bilhão de litros de água distribuídos até dezembro de 2020, e à gestão do recurso para a população, com perfuração de 76 poços em 15 municípios e equipamentos de filtragem para poços e cisternas próximos ao Córrego Ferro-Carvão e Rio Paraopeba e 250 cisternas, entre Brumadinho a Três Marias.
Ainda segundo a Vale, coletas diárias de amostras de água e sedimentos são feitas, com metodologia e dados validados pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). Um Termo de Compromisso foi firmado com o Ministério Público de Minas Gerais, estabelecendo que o monitoramento das duas bacias seja feito pelo Instituto Mineiro de Gestão de Águas (Igam).
Os monitoramentos não consideram a água do subsolo
Os dados do monitoramento feito pelo Igam são publicados em boletins mensais. A última medição, realizada em fevereiro, aponta queda nos valores de alumínio, manganês e ferro no trecho entre a captação da Copasa em Brumadinho até Esmeraldas. Porém, o Igam também notou em outros trechos concentrações acima dos limites legais desses e de outros metais, como o chumbo. No boletim, o Igam reforça a recomendação para que os moradores de Brumadinho até Pompéu não usem a água do Paraopeba.
Em novembro de 2020, três entidades que prestam assessoria técnica independente aos atingidos, em parceria com a PUC Minas, publicaram um relatório sobre a situação de acesso à água nas comunidades. O relatório ressalta que, embora a mineradora tenha propagandeado um conjunto de ações que supostamente contemplariam as demandas dos atingidos, as Assessoriais Técnica registram diariamente reclamações de centenas de famílias sobre falta de água, suspensão no fornecimento, baixa qualidade e regularidade.
“Essas demandas, recebidas pelas Assessorias Técnicas Independentes ATIs (AEDAS, Instituto Guaicuy e NACAB) e pelas Instituições de Justiça - IJs e encaminhadas àquela empresa, em grande parte sem sucesso, motivaram a elaboração do presente relatório”, acrescenta o documento.
Análises independentes
Por essa razão, as ATIs estão promovendo análises independentes das bacias. “Notamos grande distância entre os resultados das análises da Vale e do Estado e as pessoas atingidas. Elas estão recebendo diversas equipes desde o rompimento da barragem, mas não conseguem acesso aos resultados. Quando conseguem, não têm acesso a interpretações técnicas.
Muitas pessoas relatam que a Vale não divulga os resultados das análises. Os resultados do IGAM são divulgados por meio de boletins mensais online, que são de difícil acesso às comunidades”, afirma, em nota, o Instituto Guaicuy.
Segundo as assessorias, é necessário garantir a participação dos atingidos na escolha das áreas que serão analisadas. Destacam também que é preciso divulgar os resultados aos envolvidos, de maneira simples e de fácil acesso. Além disso, a participação tem permitido a inclusão na metodologia de elementos que não vinham sendo considerados, como poços artesianos, cisternas, sedimentos e peixes.
Governo de Minas e Vale firmaram acordo de R$ 37 bilhões, 47% da receita da empresa em três meses
“Os monitoramentos que estão sendo feitos são sobre a superfície do rio, não consideram a água do subsolo, que envolve toda a calha do Paraopeba, especialmente no que afeta as famílias mais próximas do rio, onde elas pegavam água para seus animais, ou mesmo em poços artesianos. Esses poços também podem estar contaminados”, comenta Vanderlei Martini, coordenador, na região do Médio Paraopeba, da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS).
Os atingidos entrevistados pelo Brasil de Fato acreditam que as análises independentes podem ajudar na reparação, trazendo transparência e mostrando a responsabilidade da mineradora nos prejuízos que as famílias sofreram. Para Simone de Assis, pescadora do Porto São Vicente, na Represa de Três Marias, a iniciativa pode recuperar a pesca na região. “Eles podem condenar de vez os nossos peixes e nós sermos ressarcidos. Aí, a Vale vai ter que ressarcir. Ou, então, limpar o nome do peixe e a gente poder voltar a trabalhar normalmente”, prevê.
:: Saiba quais são as produções de rádio do BdF MG e como escutar! ::
A questão da água no acordo
No início de fevereiro, o governo de Minas, a Vale e as instituições de Justiça firmaram, sem a participação dos atingidos, um acordo de reparação dos danos causados, de cerca R$ 37 bilhões, 47% da receita líquida da empresa em três meses, no período de outubro a dezembro de 2020. O valor final aceito pelo governo é 32% menor que a proposta inicial do próprio governo, de R$ 55 bilhões.
Segundo as assessorias, embora a falta de água seja um dos principais impactos do crime da Vale, a questão não foi contemplada no acordo. “O tema da água está fora do teto do acordo, assim como o tema da alimentação animal. Foi por isso que o Ministério Público e a Defensoria Pública de Minas Gerais propuseram a articulação de um Grupo de Trabalho para discutir essas demandas”, relata Vanderlei Martini, da AEDAS.
Outro lado
A reportagem encaminhou questões à Vale e à Copasa, mas, até o fechamento, não obteve resposta.
Edição: Elis Almeida